24 de dezembro de 2024

A revolta, de novo


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“A sabedoria e a ignorância se transmitem como doenças, daí a necessidade de se saber escolher as companhias”

William Shakespeare, escritor e dramaturgo inglês

Ainda me lembro como se fosse hoje, apesar de terem se passado já mais de 30 anos. Cursava a sétima série na escola Dinâmica Espiral, bem pertinho do Poliesportivo. Adorava as aulas de história da professora Vera Irene. Os ensinamentos daquele tempo foram muito úteis ao longo da minha vida pessoal e profissional. Continuam sendo hoje, tanto num caso quanto no outro.

Foi por estes tempos que estudamos um episódio curiosíssimo da nossa história, a Revolta das Vacinas. Tudo aconteceu em 1904, no Rio de Janeiro, então capital do país. Havia muitas doenças infecciosas, como febre amarela e varíola, que matavam centenas de milhares de brasileiros. O problema era gravíssimo.

O então presidente da República, Rodrigues Alves, convidou o médico sanitarista Osvaldo Cruz, que havia estudado em Paris no instituto Louis Pasteur, para assumir a função de Diretor de Saúde Pública. Osvaldo Cruz tinha sido muito bem sucedido coordenando uma campanha sanitária para erradicar, anos antes, a peste bubônica das docas do porto de Santos. Mas nada se comparava à missão que teria pela frente.

Cruz convenceu o presidente a implantar pela primeira vez a atividade dos “mata-mosquitos”, hoje conhecidos como agentes de vetor, que combatiam o aedes aegypt. Conseguiu também que o presidente decretasse, pela primeira vez, a vacinação obrigatória. Era o único jeito de enfrentar a varíola. Mas, a população rechaçou. Houve uma revolta, que quase termina em golpe de Estado. Tudo por conta da vacina.

As pessoas reclamavam de ter que abrir suas casas para os “mata-mosquistos”. Os comerciantes se queixavam dos prejuízos para a sua atividade com os estabelecimentos que às vezes precisavam fechar. Protestavam contra a obrigação de se vacinar, porque acreditavam que a dose “fazia mal”.

Houve quem organizasse protestos, atacaram jornais, quase mataram Rodrigues Alves. Mas Osvaldo Cruz seguiu obstinado, com sua missão, enquanto viveu. Morreu muito jovem, ainda com 45 anos. Mas antes, e apesar da ignorância de tantos, salvou milhões de vidas.

Naquele tempo de sétima série na Dinâmica, fiquei estupefato com a história. Parecia absurdo demais que décadas antes, diante de um médico que mostrava que a vacina salvava vidas, tantos preferissem atacá-lo. Vera Irene, a professora, explicava que muito era explicado pelas precárias condições sanitárias e pela ignorância geral da população, majoritariamente analfabeta e desempregada.

Nunca poderia imaginar que, três décadas depois, numa sociedade extremamente conectada e com uma oferta de informações como nunca antes a humanidade experimentou, viveria situação semelhante àquela dos tempos de Osvaldo Cruz.

Estamos diante da pior crise de saúde dos últimos 100 anos. Vivemos à beira da maior catástrofe econômica de todos os tempos. Nada menos de 35% da população do mundo segue confinada em casa, em todos os continentes. Praticamente todos os líderes mundiais, inclusive o presidente americano, se preparam para medidas ainda mais restritivas. Ninguém saírá ileso, não haverá nenhuma pessoa que não será afetado pelo coronavírus ou suas consequências.

Ainda assim, muita gente se comporta como se tudo fosse “histeria”, um “exagero” da mídia, um “complô” para prejudicar este ou aquele político. Querem retomar o funcionamento das fábricas, querem abrir os comércios, querem bares e restaurantes de volta, querem aulas nas escolas. Eu também quero, mas agora não é a hora.

Quem pensa que basta abrir tudo para que o mundo volte ao que era antes comete um erro infantil. Não haverá para quem produzir, nem para quem vender. A recuperação não será automática. E, neste instante, há um vírus que contagia, adoece e, no limite, mata. Não duvidem disso como tantos duvidaram de Osvaldo Cruz. O Brasil é outro, sem dúvida. Torço para que seja também melhor.