17 de novembro de 2024

Passado


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Aqueles eram tempos de guerra, havia vínculo evidente entre causa e efeito, escondia-se o óbvio, escancarava-se o absurdo e o impossível. Anos 40, época de glamour, de grandes verdades ocultas e absurdas mentiras tomadas como plausíveis. São Paulo era terra da garoa. Rio de Janeiro – a capital – Cidade Maravilhosa. Belo Horizonte, Terra das Alterosas. Porto Alegre estava muito longe e Fortaleza, quase Europa, tão distante! Sonhava-se construir uma capital brasileira no centro do país. Lá, onde só tinha onça e capivara! Que loucura!

Chique para paulistanos era tomar chá na Barão de Itapetininga. Para cariocas, freqüentar a Confeitaria Colombo e ir à praia com maiô inteiro, com saínha. Só as muito ousadas usavam duas peças, quase uma: a separação era absolutamente sutil. Luvas, chapéus – para homens e mulheres – perfumes (de Gardênia) para elas, Glostora no cabelo, para eles. Ia-se muito ao cinema, só para ver Heddy Lamar que meio século depois seria reconhecida como mulher de inteligência acima da média de todos os tempos, mais ou menos assim, como Marie Curie. Calças e soutiens sob o vestido acinturado. Combinações de seda bordadas, alças largas. Calcinhas que hoje poderiam passar por shorts, sutiãs de alças e bordas largas, bojo estilo ninho de passarinho. Ainda assim, cinturas finas – de pilão. Soberbas criações do diabo, as meias de seda apareceram, substituindo o papel das maçãs no velho processo da sedução masculina.

Dançava-se muito: Xavier Cugat, boleros com direito a arfâncias e fremências: La Barca, Vereda Tropical. O último samba-canção, gravado por Nelson Gonçalves, inspirava serenatas e falava – ousadia! - de camisolas “do dia”. Dançando (dois pra lá, dois pra cá) sentia-se o cheiro do sabonete Palmolive, não se falava muito - era preciso cuidar do equilíbrio nos volteios mas, ao voltar para a mesa, comentava-se sobre os artigos das revistas Seleções – que ainda eram editadas em Portugal. O samba descia o morro, mas só era aceito mesmo nos palcos dos Cassinos, dançados por vedetes tanajuras com pouca roupa. Tais estabelecimentos (do “pecado”) viriam a ser fechados naquela época por ordem da carolice da mulher do presidente da época.. E até hoje não foram reabertos...

Criaturas literárias como Karenina, Bovary e Capitu eram comentadas a boca pequena, pois responsáveis por nefandos atos. A virgindade de Doris Day tinha sido recém inventada. O bigode de Clark Gable era imitado. Cyd Charisse, parceira de Fred Astaire, substituía Betty Grable. Nora Ney, Linda e Dircinha Batista reinavam absolutas. Canetas-tinteiro? Sheaffers ou Parker! A França tinha sido tomada pelos alemães. O romance entre o rei da Inglaterra e Miss Simpson dividia opiniões e nossos pracinhas se encontravam na Itália.

Românticos, agressivos, ricos, criativos, conturbados, interessantes, imaginativos, repletos de sonhos. Natural que os anos 40, vissem nascer artistas, astros e estrelas que ainda povoam nosso imaginário.


(Publicado originalmente no Comércio num distante janeiro de 2001, com o título Bons Tempos.)


Lúcia Helena Maníglia Brigagão
Jornalista, escritora, professora
luciahelena@comerciodafranca.com.br