27 de julho de 2024
RELÓGIO DO SOL

A saga da construção


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Uma das primeiras fotografias do Relógio do Sol, quando ainda havia um coreto na Praça Central

Franca havia crescido muito ao longo do século XIX. Se em 1812 apenas 132 almas habitavam o pequeno arraial, ao entrar no último quarto do século a cidade reunia 8.248 habitantes – 6.818 homens e mulheres livres e 1.340 escravos, aponta estudo do historiador Lélio Luiz de Oliveira, com base em dados referentes a 1876. Quando Frei Germano chegou, muito provavelmente em 1881, foi esta a realidade que encontrou por aqui. Negros ainda podiam ser comprados e vendidos como mercadoria, a mesma triste realidade que se repetia por todo o Brasil, um dos últimos países do mundo a abolir a escravidão. A Lei Áurea, proposta pela Princesa Isabel, só seria promulgada sete anos depois, em 13 de maio de 1888.

Foi três anos após a chegada de Germano que o sonho de construção do Relógio do Sol começou a sair do papel. Em 1885, o relógio que se converteria no mais emblemático monumento de Franca era um projeto em andamento, capitaneado pelo frade e apoiado diretamente pelo vigário Cândido Rosa e por César Augusto Ribeiro, dono de O Nono Distrito, o primeiro jornal de Franca.

Por este tempo, Frei Germano já havia decidido instalar o relógio em frente à Igreja Matriz, exatamente onde se encontra hoje. O lugar à época era conhecido como Largo da Alegria. Sem recursos para financiar o projeto, o jeito encontrado por Frei Germano para angariar o dinheiro necessário foi passar a sacolinha – literalmente. Nas missas, pediam-se doações para as obras do Relógio do Sol. Nas páginas de O Nono Distrito, anunciava-se um grande bazar com renda revertida para a construção do monumento. Quem doava dinheiro ou prenda que seria leiloada, tinha seu nome estampado no jornal. Nada muito diferente do que, 132 anos depois, continua acontecendo.

É curioso observar que o comunicado no jornal era especificamente destinado às mulheres. O texto era direto. “Às Senhoras: já foram distribuídas circulares às excelentíssimas senhoras desta cidade pedindo prendas para o bazar que pretende realizar o reverendíssimo padre-mestre Frei Germano d’Annecy, auxiliado pelo digno Vigário da paróquia, a fim de construir elegantíssimo Relógio de Sol, todo de mármore, em frente à matriz”, estampou o jornal numa de suas edições de 1885. “Todo o trabalho científico desta obra, que é muito mais importante do que o material e artístico, será feito pelo ilustradíssimo capuchinho, que é competentíssimo na matéria”, atestava o semanário.

Enquanto a campanha de arrecadação seguia firme, Frei Germano se debruçava sobre os planos do relógio. Após definir o local onde o monumento seria instalado, era preciso fazer uma infinidade de medições que seriam fundamentais para o desenho correto das faces do relógio. Se tudo não fosse muito preciso, as horas projetadas simplesmente não corresponderiam à verdade. Ainda hoje, com todos os recursos tecnológicos, é um trabalho complexo. Naquele tempo, além do seu cérebro, Frei Germano só podia contar com lápis e papel. Para ele, que fora o primeiro astrônomo de São Paulo, o primeiro a fazer experiência com luz elétrica, o primeiro professor de física, bastava.

Não que a tarefa tenha sido simples. No estudo O Gnômon de Frei Germano, publicado originalmente no Comércio da Franca em 1937 (e que infelizmente se encontra perdido, restando apenas alguns excertos), o professor Carmelino Corrêa Júnior detalha alguns dos cálculos feitos por Germano.

Primeiro, ele precisou determinar a latitude do ponto onde o relógio seria instalado. Traçou também o meridiano de Franca, no mesmo lugar. Calculou a posição relativa do sol na esfera do Relógio do Sol, considerada a posição do monumento. Calculou ainda as trajetórias de passagem do Sol pelo zênite de Franca, para desenhar os quadrantes Norte e Sul. Determinou a posição da cidade na esfera celeste, para correta afixação do globo do Relógio. É possível que tenha também determinado a inclinação magnética de Franca.

Não entendeu quase nada? Não se frustre. Eu também não, por mais que tenha me debruçado e pesquisado sobre o tema. Mas é suficiente saber que são conceitos de matemática, física e trigonometria que estão na base dos cálculos necessários para o desenho de um relógio de sol. Sem esses cálculos, o máximo que se consegue é projetar uma sombra – jamais, medir as horas. Muito diferente da maioria, Frei Germano entendia tudo do assunto. E concluiu o trabalho com perfeição.

FUNÇÕES DO RELÓGIO

O Relógio do Sol foi projetado com três funções. A mais óbvia, registrar as horas do dia. Os quadrantes servem para este fim. A faceta Norte, voltada para a fonte luminosa, marca as últimas horas da manhã e as primeiras horas da tarde, durante praticamente o ano inteiro; a Sul, que faz frente para Igreja de Nossa Senhora da Conceição, cumpre o mesmo papel, mas apenas nos últimos 20 dias do ano; o mostrador Leste, voltado para a rua Major Claudiano, marca as primeiras horas da manhã, o ano inteiro; o Oeste, que mira a praça Barão, mostra as últimas horas da tarde, também o ano inteiro.

Além das horas, o Relógio também tem um mostrador que indica a passagem do Sol pelas constelações zodiacais. Ou seja, dá para saber no mês de qual signo estamos. Por fim, tem a esfera na parte superior, onde é possível observar a inclinação relativa de Franca no espaço.

Há um excelente estudo sobre o tema, feito nos anos 90 pelos professores Antônio Carlos Marangoni, Antônio César Geron e Lucinda Rodrigues Coelho, que não apenas explica detalhadamente o funcionamento do Relógio do Sol, como também se propõe a servir de ferramenta para que alunos façam estudo interdisciplinar de matemática e física através da construção de um modelo simplificado. É impactante.

Mas de volta a 1885, o jornal O Nono Distrito dizia que o relógio seria forjado em mármore de Carrara, na própria Itália. A versão foi assumida como verdadeira por todos os historiadores que já se dedicaram ao assunto, mesmo porque se não há documentos que comprovem que ele foi esculpido na Europa, também não há nenhum relato que indique o contrário.

Mas depois de meses debruçado sobre artigos, noticias, livros e estudos sobre o Relógio do Sol, Frei Germano d’Annecy e seu respectivo período histórico, ouso construir outra tese. No livro Instituto Astronômico e Geofísico da USP – Memória sobre Sua Formação e Evolução, o autor, Paulo Marques dos Santos, relata que, durante seus anos no Seminário Episcopal em São Paulo, Frei Germano construiu um outro relógio de sol, além do mural vertical declinante que durante 53 anos fora a hora oficial de São Paulo.

Este segundo relógio, mais parecido com o de Franca, fora também esculpido em mármore de Carrara a partir de desenhos e projetos de Frei Germano, mas em São Paulo mesmo. O frade capuchinho passou a tarefa de esculpir a pedra a um conterrâneo, o artista francês Jules Victor Andre Martin, que após estudar na escola de Belas Artes de Marselha, no sul da França, havia se radicado no Brasil a partir de 1870. Este mesmo Jules Martin projetaria depois o Viaduto do Chá, na Capital, e seria seu concessionário por muitos anos.

Acho pouco crível que Frei Germano tenha recorrido a um artista francês radicado no Brasil para esculpir um relógio quando morava em São Paulo e tenha, 20 anos depois, optado por mandar cravar na Itália a pedra do Relógio do Sol de Franca.

Os entraves parecem grandes demais. Imagine a dificuldade de concluir os desenhos a mão, enviar por um mensageiro no lombo de mula numa viagem interminável entre Franca e Santos, embarcar os projetos num navio para alguém retirar em Gênova, na Itália, esperar que fizessem o trabalho no mármore, e depois embarcassem o monumento noutro navio para fazer todo o caminho de volta até Franca.

É até óbvio, mas não custa lembrar que não havia qualquer forma de comunicação direta, o que torna ainda mais improvável a versão oficial. Porque se em 1885 Frei Germano ainda cuidava de arrecadar dinheiro para o monumento, é difícil acreditar que eles tenham conseguido terminar tudo, acertar preços, mandar para Itália e receber tudo de volta a tempo da inauguração, em 1887. Além disso, há uma inscrição no relógio, grafada Martinelli sp, que indica que mais alguém na capital lidou com o monumento.

Acho muito mais plausível que o Relógio do Sol tenha sido esculpido por algum conhecido de Frei Germano em São Paulo. Pode ter sido o próprio Jules Martin ou algum outro homem talentoso, que usou mármore importado da Itália, porque de fato o monumento é feito da pedra de Carrara, mas que tenha realizado o belíssimo trabalho na própria capital da Província. Isso torna as distâncias bem menores e o tempo e os custos, muito mais razoáveis.

De um jeito ou de outro, o fato é que o monumento estava pronto e instalado em Franca em abril de 1887. Foi entregue ao público no dia 11, após bênçãos especiais do Padre Cândido Rosa, na mesma data em que foi inaugurado o ramal da Mogiana, na Estação, ligando Franca às linhas de trem que começavam a cortar o Estado. Passava a ser possível sair de Franca e chegar a São Paulo no mesmo dia, viajando a quase 40 km/h, velocidade espantosa para um tempo em que os deslocamentos mais rápidos eram feitos em carro de boi ou a cavalo.

LIÇÕES

Em 1890, Frei Germano deixaria Franca, sozinho, sem levar praticamente nada porque nada tinha acumulado além de conhecimento. A vida inteira dedicara-se exclusivamente aos estudos e oração.

Desde então, não foram poucas as vezes em que professores, historiadores e especialistas alertaram para a necessidade de o poder público reservar a devida atenção para um monumento que, por várias razões, é histórico.

Infelizmente, todos os alertas, feitos ao longo de décadas, restaram inúteis. O temporal de 27 de dezembro de 2017 mostrou que é preciso fazer alguma coisa mais efetiva para preservar – e valorizar – uma joia que repousa no Centro de Franca.

O primeiro passo foi dado. A restauração, apesar de demorada por conta dos processos burocráticos de contratação da empresa especializada – o trabalho de recuperação, propriamente dito, durou apenas 32 dias – foi concluída e o Relógio do Sol deve ser entregue à cidade nesta semana, no dia 6 de dezembro.

A equipe que cuidou dos reparos foi formada por três mulheres. Leila de Oliveira, formada em Ouro Preto, com 10 anos de experiência em restauração de telas, esculturas e pinturas; e Júlia Russi, também especialista, formada em Portugal, ambas de Franca, se uniram a Laura Bassul, expert em recuperação de madeira e metal, com especialização pela Unicamp, na missão de devolver o Relógio do Sol a seu esplendor original.

O trio garante que o trabalho ficou perfeito. “Foi uma honra e um desafio por ser um monumento que faz parte da história da cidade. Como restauradora e francana, foi uma grande responsabilidade. O trabalho ficou fantástico. Fiquei emocionada com o resultado”, disse Leila de Oliveira.

Restauradora trabalha no Relógio do Sol de Franca que deve ser entregue à população no próximo dia 6 de dezembro

Agora, é torcer para que o poder público, 132 depois, enfim tome medidas para garantir a preservação e valorização do Relógio do Sol de Franca, um monumento único, delicado, carregado de história e que é também um tributo a Frei Germano d’Annecy, um dos mais geniais personagens que já fizeram de Franca seu lar.

Um bom passo possível de ser adotado pelo prefeito Gilson de Souza seria fazer o que foi sugerido por especialistas paranaenses, em vão, a um outro prefeito, Maurício Sandoval Ribeiro, ainda nos anos 70 do século XX: constituir uma comissão permanente encarregada de monitorar e cuidar do Relógio do Sol, de sua história e do legado de Frei Germano, além de colocar ao lado do monumento informações que permitam a compreensão de seu modo de funcionamento e de sua história. Não custa praticamente nada – e pode ajudar não apenas a preservar, mas também a difundir o significado e a importância do relógio de Franca. Vale ou não vale a pena tentar?

AGRADECIMENTOS

O trabalho de resgate e pesquisa que me propus a fazer, especialmente no precioso acervo do jornal Comércio da Franca, seria simplesmente impossível sem as trilhas deixadas com talento e dedicação por tantos que me antecederam. Sou muito grato ao trabalho de professores e historiadores como Alfredo Palermo, Octávio Cilurzo e José Chiachiri Filho. Importante destacar também os levantamentos publicados no livro Instituto Astronômico e Geofísico da USP – Memória sobre Sua Formação e Evolução, de Paulo Marques dos Santos, que esclarece muitos pontos sobre a trajetória de Frei Germano no Seminário Episcopal de São Paulo e suas experiências com eletricidade na Capital. Digno de registro e admiração o livro Economia e História – Franca – Século XIX, de Lélio Luiz de Oliveira, com análises econômicas e dados surpreendentes sobre a cidade. Meus respeitos mais profundos aos professores Antônio Marangoni, Antônio Geron e Lucinda Coelho, autores da apostila O Ensino Interdisciplinar de Matemática e Ciências – Um Estudo do Relógio do Sol da Cidade de Franca, cuja adoção no sistema educacional deveria ser obrigatória, tamanha a qualidade e pertinência. E, por fim, meu carinho e mais profundo afeto ao professor Carmelino Correa Junior, pelo artigo O gnômon de Franca, e ao advogado João Nascimento Franco, autor de Franca e Annecy – Cidades Irmãs, ambos publicados no Comércio, o primeiro em 1937, o segundo em 1999. Os dois autores são fundamentais para se entender a grandeza de Frei Germano d’Annecy e a importância do Relógio do Sol de Franca. No caso de João Nascimento Franco, sua ida a Annecy e a correspondência com Padre Bétemps, chefe da Ordem Franciscana da França, foram cruciais para corrigir informações e ajustar datas que têm sido registradas de forma equivocada ao longo do tempo.