24 de dezembro de 2024

O que se sabe e o que nem se imagina


| Tempo de leitura: 4 min
“Tudo, aliás, é a ponta de um mistério, inclusive os fatos. Ou a ausência deles.”
Guimarães Rosa, escritor brasileiro

 

De cara, aviso aos leitores que me acompanham neste espaço: não acredito que o então deputado federal e hoje presidente da República, Jair Messias Bolsonaro, tenha tido qualquer participação na execução da vereadora Marielle Franco e de seu motorista, Anderson Gomes. Está mais do que demonstrado que não foi ele quem atendeu o interfone no condomínio Vivendas da Barra quando Élcio Queiroz, um dos acusados de matar a vereadora, se apresentou na portaria para visitar Ronnie Lessa, o outro acusado do assassinato que mora ali, no dia do crime. Além dos áudios revelados, sobram registros que mostram que desde antes da execução até dias depois Bolsonaro permaneceu em Brasília, participando de votações na Câmara dos Deputados.

A mesma convicção que tenho em relação à inocência do presidente da República não estendo a dois de seus filhos, Carlos e Flávio, e a alguns de seus ex-assessores. Tem muita coisa esquisita nesta história – tanto pelo que se sabe quanto pelo que, até agora, misteriosamente, ninguém explicou.

Aos fatos, então. Sabe-se, sem margem para dúvidas, que os dois acusados, Elcio Queiroz e Ronnie Lessa, ambos presos preventivamente, tinham sido policiais militares. Ronnie é também “caveira” - participou do curso de formação do Bope (Batalhão de Operações Especiais da Polícia Militar do Rio) e vizinho de Bolsonaro. Não que apenas morem no mesmo condomínio. As casas ficam próximas uma da outra, a poucos metros de distância, e não muito longe da residência de ninguém menos do que Carlos, o incendiário filho do presidente que é vereador no Rio, ex-colega e desafeto de Marielle, e também morador do mesmo condomínio.

Havia conexões mais pessoais também. A filha de Ronnie namorou um dos filhos de Bolsonaro, o menos conhecido Jair Renan, de 20 anos. Tanto Ronnie quanto Elcio são acusados de pertencer ao Escritório do Crime, milícia formada por matadores e liderada pelo major Ronald Pereira, mais conhecido como “Tartaruga”, atualmente preso por participar de uma chacina, e pelo ex-capitão do Bope Adriano da Nóbrega, o “Gordinho”, foragido. Raimunda Magalhães, mãe de Adriano, e Daniela de Nóbrega, sua mulher, ocuparam cargos comissionados no gabinete de Flávio Bolsonaro, outro filho do presidente, quando ele era deputado estadual. Foi ele também o autor de uma “moção de louvor e congratulações” aprovada em homenagem a “Tartaruga” e “Gordinho”, os “chefes” de Elcio e Ronnie.

Confuso? Tem mais. Em sua defesa, Flávio costuma dizer que não cuidava das nomeações do seu próprio gabinete, e que as indicações seriam responsabilidade de Fabrício Queiroz, o ex-assessor e amigo da família que fez depósitos suspeitos na conta do próprio senador e da primeira-dama, Michelle. Além de “benemérito” da família Bolsonaro, Queiroz é também pai de Nathalia, a bonita personal trainner que foi funcionária-fantasma do gabinete de Jair enquanto deputado federal.

Para completar, um dia depois do Ministério Público atuar na velocidade da luz para desmentir o porteiro – de forma acertada, registre-se - que disse que Elcio pediu para falar na casa do presidente no dia do crime, a promotora Carmen Carvalho, uma das responsáveis pelo caso, admitiu que fez campanha para Jair Bolsonaro e decidiu se afastar das investigações.

E o que não se sabe? Para começar, exatamente como todas essas peças se encaixam. Por exemplo, seria mera coincidência o fato de um dos assassinos de Marielle morar no mesmo condomínio que Jair e Carlos ou isso indica uma proximidade bastante grande entre todos, como insinua os namoro dos filhos?

É também apenas coincidência que os assassinos tenham se reunido justamente neste condomínio, e não num outro lugar qualquer, no exato dia do crime? Por que, entre dezenas de outras possibilidades, o porteiro grafou no livro de registro de visitas que Élcio iria na casa de Jair Bolsonaro e não na de Ronnie Lessa? E por que, segundo o mesmo porteiro, ao atender uma segunda ligação feita para a casa de Jair Bolsonaro para alertar que o “visitante” havia mudado de rumo, alguém disse que “estava ciente” que o destino era outro? Existe esta gravação? O MP tem em sua posse? A Polícia? Ou é tudo forjado? Quanto ao depoimento do porteiro, foi apenas um erro ou indica, por exemplo, que Elcio costumava visitar Jair – ou Carlos.

O que dizer então dos registros de áudio, obtidos com extremamente facilidade por Carlos e que serviram para isentar, corretamente, qualquer responsabilidade do presidente? Em 18 meses de investigação, nem a Polícia nem o Ministério Público do Rio tiveram antes a mesma ideia para ver quem mais esteve na casa do acusado no dia do crime? Por que este porteiro – e todos os demais – não tinham sido ouvidos antes? Quem mais entrou ou saiu do condomínio naquele dia?

O mistério da execução da vereadora Marielle Franco anda parece longe do fim. Muita coisa precisa ser explicada, outras tantas desvendadas. Como diria o personagem Marcelo na cena 4 do primeiro ato da peça Hamlet, de Shakespeare, “há algo de podre no Reino da Dinamarca”. Por tudo que já se viu, o fedor cerca também a polícia do Rio de Janeiro. E, sem nenhuma dúvida, o círculo íntimo da família Bolsonaro.