24 de dezembro de 2024

Neoportuguês


| Tempo de leitura: 3 min
“As palavras formam os fios com os quais tecemos nossas experiências”
Aldous Huxley, escritor inglês

 

 

Cresci numa casa onde jornais, revistas, livros – e gibis – podiam ser encontrados em toda parte. Com um pai jornalista e uma mãe que, além do mesmo ofício, ainda era escritora e professora, nem podia ser diferente. Curioso, lia muito e gostava de desvendar a origem de algumas expressões.

Me lembro, como se fosse hoje, de um almoço específico. Papai tinha uma pequena lista de compras e anotara “dôces”, com acento. Eu insistia que não tinha, ele dizia que tinha. Mamãe, a professora, veio confirmar que eu estava certo. O assento tinha caído com a reforma ortográfica de 1971. Tinham se passado já alguns anos, mas escrever é hábito e meu pai continuava grafando do jeito que sempre havia feito a vida inteira.

Foi neste dia que minha mãe, depois de me contar sobre um grande professor que tivera na faculdade, o filólogo João Penha, e de me recomendar a leitura de Sagarana e Grande Sertão: Veredas, ambos de Guimarães Rosa, autor que usava em seus romances palavras e expressões que não existiam, aproveitou para me dar um exemplo sobre como a língua evoluía. Nesta época, os gibis, que sempre incorporavam gírias, já traziam a expressão “Cê”, no lugar de “você”. Com toda paciência do mundo, mamãe me contou que, no começo, era “Vossa Mercê”. No uso coloquial, a expressão foi se transformando em “voismicê”. Daí para “você”, foi um pulo. Ainda que continue sendo grafada assim na “norma culta”, não são poucos os lugares onde a grafia “Ce” virou o padrão. Na fala, por exemplo, é onipresente. Nos grupos de WhatsApp, idem.

É exatamente o jeito de escrever nos grupos de WhatsApp e a fala das crianças que tem me chamado a atenção. “Pesquisar”, por exemplo, é “googar” ou “dar uma googada” – referência ao mecanismo de busca Google. Se alguma coisa deu errado, é porque “bugou”, termo derivado do inglês “bug”, inseto em português, e inicialmente usado por programadores para descrever falhas em softwares.

“Vamos embora” foi reduzido simplesmente para “Bora”. Recordar-se de alguma coisa numa quinta-feira, exemplo máximo de síntese, virou “TBT”. “Risada” ou “gargalhada” agora são simplesmente “kkkkkk”- ou “rs”, para os mais tímidos. “Com certeza” é “concerteza”, tudo junto e com “n”. Referir-se ao melhor amigo é falar do seu “BFF”, sigla em inglês para “Best Friend Forever”(Melhor Amigo para Sempre). Fazer uma coisa sem muita arrogância, mas com conhecimento de causa, é “namoral”, tudo junto também. E se a tal coisa for muito boa, divertida, é “daora”, também emendado, sem “h”. Tem ainda um dos meus neologismos preferidos, que aprendi nesta última semana com o João. “Nuteleiro”, que designa alguém que ama... Nutela.

Obviamente, não poderiam faltar os palavrões. “Porcaria”, que já foi “essa porra”, converteu-se em “saporra”. O famosíssimo “p... que o pariu” reduziu-se a um quase poético “taqueopariu”. No ritmo e na intensidade que as mudanças caminham, não será surpresa se daqui a alguns anos a gente precisar de um tradutor português-neoportuguês para entender o que andam dizendo por aí. Falei e disse. Ou, melhor, #prontofalei.