24 de dezembro de 2024

O menino do cabelo azul


| Tempo de leitura: 4 min
“Muitas vezes encontramos
nosso destino por
caminhos que enveredamos 
para o evitar”
La Fontaine, poeta e escritor francês

 

Conheci o Davi há mais ou menos um ano. Fui procurado por sua tia, Maria Augusta, que trazia um apelo desesperado. O garoto, então com nove anos, enfrentava uma duríssima batalha contra um câncer muito agressivo, um meduloblastoma. É um tumor na cabeça, de cura improvável e que avança muito rápido. Para os poucos que resistem, as sequelas são quase sempre inevitáveis.

Davi tivera uma vida normal até o início do ano passado, quando umas dores de cabeça passaram a incomodar. Os primeiros médicos que o atenderam acharam que era enxaqueca ou sinusite. Estavam enganados. Vieram as tonturas, a investigação médica se aprofundou, e enfim, o diagnóstico que trazia embutido uma terrível sentença: Davi era portador de uma doença muito grave e incurável. O especialista de Franca recomendou a sua mãe, Isabel, que aproveitasse da melhor forma possível os dias que restassem a Davi. Isabel não se conformou. Nenhuma boa mãe se conformaria.

O fato é que não havia tratamento disponível em Franca para ele. Os cuidados possíveis, para pelo menos retardar a evolução da doença, deveriam ser feitos em Barretos. Mas alguém, certamente iluminado, sugeriu a Isabel que buscasse ajuda no Hospital do GRAACC (Grupo de Apoio ao Adolescente e Criança com Câncer), em São Paulo. Isabel, sempre amparada pela irmã Maria Augusta, foi para lá com o filho em busca de um milagre.

Encontrou. Uma médica, cirurgiã habilidosíssima, aceitou o desafio de contrariar os prognósticos e tentar uma intervenção arriscadíssima. Davi foi internado e, poucos dias depois, operado. Foram 17 horas de cirurgia. Davi resistiu, bravamente. O grosso do tumor foi retirado. O resto teria que ser debelado com sessões de quimioterapia.

Era para essa fase a ajuda que Maria Augusta procurava quando veio até mim. O Hospital do Graacc, apesar da excelência, não oferece acomodações para a família dos pacientes que vão passar por quimioterapia. Elas precisavam de um lugar para ficar em São Paulo durante as longas semanas de tratamento. Havia urgência, porque as sessões começariam em poucos dias. Fizemos uma campanha no programa Hora da Verdade, que comando, ao lado de Leandro Vaz, na rádio Difusora. Graças à compaixão dos ouvintes, arrecadamos dinheiro suficiente para que eles se acomodassem em São Paulo por alguns meses.

Visitei Davi na casa onde morava com a mãe e o irmão, na Vila Santa Cruz, pertinho do jornal, antes que seguissem para São Paulo para as sessões de quimioterapia. Encontrei Davi no seu forte, uma cabana que havia montado na sala da casa e que servia de refúgio. Sentia-se protegido ali dentro, amparado também pela tia Maria Augusta, pelo tio Amauri, pelo primo Leandro. Vaidoso, não quis tirar foto de jeito nenhum porque estava careca, efeito colateral do tratamento que fazia. Queria brincar. Queria poder voltar a comer normalmente. Queria muito voltar para a escola. Queria também pintar o cabelo de azul. Mas antes, precisava terminar de vencer o maldito câncer.

Davi venceu. No início deste ano, já de volta a Franca, comemorou os exames que confirmaram que o câncer estava em remissão. Não havia mais sinais do tumor em seu corpo. Não havia sequelas. O cabelo voltava a crescer, lentamente. Os sonhos, esses que nos movem a todos, voltaram a ser tangíveis para Davi. O primeiro deles, uma festa de aniversário. Davi queria muito comemorar seus 10 anos. Ele comemorou. Foi uma linda festa.

Mas, dos mistérios mais profundos da existência, definitivamente, nada entendemos. No final de maio, Davi começou a sentir falta de ar. Foi parar no pronto-socorro e, de lá, encaminhado para a Santa Casa. Tinha pneumonia. Acabou internado, foi para a UTI. Passou 33 dias ali, sem melhoras. Foi transferido para o mesmo Hospital do Graacc, em São Paulo, mas já era tarde demais. Dezesseis dias depois, na última terça-feira, Davi morreu. O menino de dez anos que venceu um câncer terrível acabou derrotado por uma infame bactéria.

Fui ao seu velório na manhã de quarta-feira. Xandinho, o irmão mais velho, um gigante de 12 anos, não saía do lado do caixão por um instante sequer. Solidário e companheiro, recusou-se a arredar pé do lado do corpo do irmão. Não sei de onde as mães tiram forças num instante como esse, mas sei que de alguma forma elas conseguem. Porque as mães, só as mães, sempre conseguem. E Isabel, enquanto velava um filho, consolava o outro. “Foi só o corpinho do Davi que foi embora, meu filho. Ele está no céu, olhando para nós. Feche os olhos que você vai sentir ele te abraçar. Mamãe acabou de sentir”, repetia, poeticamente, para o primogênito.

A consternação era geral. A tristeza, intraduzível. Mas a natureza humana consegue produzir instantes de beleza mesmo em meio à mais absoluta tristeza. Foi o que aconteceu, pouco antes das 11 da manhã, quando vários garotos, do primo Leandro ao irmão Xandinho, passaram a circular pelo velório com os cabelos azuis. Um monte de meninos, entristecidos, todos com os cabelos azuis, numa homenagem profundamente emocionante. Todos como Davi, que jazia, sereno, com os cabelos azuis da cor do céu. Certamente, do mesmo céu de onde, como ensinou Isabel, ele repousa, dentro da sua barraca, olhando e zelando por todos que amou. Descanse em paz, meu bravo herói do cabelo azul.