No dia 31 de julho, conheci um mundo escuro e assustador, mas que acabou por me abrir os olhos. A ideia já estava combinada com a editora Nelise Luques: eu passaria o dia na Sociedade Francana de Instrução e Trabalho para Cegos. De manhã, usaria uma venda nos olhos e realizaria atividades como qualquer outro usuário, e à tarde acompanharia o dia a dia deles. Desde o princípio, a sugestão de realizar a reportagem me empolgou, mas, ao mesmo tempo, me deixou apreensivo. Afinal, um dos meus maiores medos era justamente perder a visão. Além disso, outra exigência da pauta era que eu andasse pelas ruas vendado. Eu, que já sou desorientado enxergando, quem dirá cego! Mesmo receoso, aceitei sem hesitar, lembrando de um sábio conselho que uma vez recebi do meu chefe de reportagem, Leandro Vaz: “Se um repórter tiver medo de alguma coisa, é melhor ele ficar em casa, dormindo”.
Então, às oito horas de uma quarta-feira, lá estava eu na Sociedade. Já estava programado que faria algumas atividades próprias para deficientes visuais que visitavam a entidade pela primeira vez: fisioterapia e terapia ocupacional. Pouco depois o teste começou e estava vendado. Ao me ver privado de um sentido que julgava o mais importante de todos, era como se fosse de novo um bebê, tendo que descobrir o mundo. Mesmo segurando o braço da assistente social Cássia Lucas, que me levou até o escritório do fisioterapeuta Carlos Granzoti, cada passo era incerto, uma queda em potencial.
Bengala
Carlos me tratou como alguém que havia acabado de perder a visão. Então, pratiquei exercícios de reconhecimento de ambiente e, principalmente, de manejo de bengala. Existe uma técnica para usá- la, colocando-a rente ao chão e “escaneando” o solo à sua frente, passando de um lado para o outro. Parece fácil, mas dominar o objeto exige coordenação e paciência.
A tarefa final com Carlos, andar nas calçadas da via pública, pode ser resumida a uma palavra: desorientação. Sem ver, era impossível saber onde estava: me movimentei só com a orientação do fisioterapeuta. Meus pontos de referência eram as paredes das casas, ou seja, bem rente à parede. No entanto, obstáculos inesperados - que para uma pessoa que enxerga, não são nada - como um portão aberto, uma escada ou uma árvore - foram o suficiente para me atrapalhar e demorar para achar o caminho correto novamente.
O gran finale foi atravessar a rua Santa Catarina, em direção à avenida Brasil: mesmo com Carlos afirmando que eu poderia passar de um lado ao outro, é, um salto, literalmente, no escuro: nas duas vezes em que realizei esse feito, o medo de ser atropelado foi imensurável. Antes de voltarmos à Sociedade, encontrei outro problema na avenida Brasil: o semáforo sonoro não funcionava, o que impedia deficientes de atravessar a rua com segurança.
Outros sentidos
A próxima etapa foi com a pedagoga Maira de Oliveira. Ela me ensinou a “enxergar sem os olhos”, ou seja, desenvolver meu tato. Demorou para perceber que certos objetos, num primeiro momento idênticos, possuíam texturas distintas e reagiam diferentemente ao toque. Último desafio do dia: almoçar. A Sociedade ofereceu um almoço, mas foi bastante complicado saber se havia realmente comida no meu garfo ao levá-lo à boca.
Não existem palavras para descrever o alívio que eu senti ao retirar a venda após o almoço. Mas a minha “conquista” tinha gosto agridoce: eu poderia recuperar minha visão a hora que quisesse, mas e os outros tantos que não têm a mesma possibilidade? Mais do que qualquer outra coisa, a minha experiência como cego me motivou a estar de prontidão para ajudar qualquer pessoa com deficiência no que precisar. Porque elas já sofrem demais.