Na véspera do aniversário de Franca, esta é uma história que dá gosto contar. Roseli Leite de Freitas é uma daqueles pessoas que trabalham no anonimato e que dedicam sua vida para tentar transformar a cidade e ajudar a construir uma sociedade nova. O trabalho voluntário é sua bandeira, a educação é sua paixão, a vida é sua missão.
Roseli é biomédica há 30 anos e mestre em promoção de saúde. Casada e mãe de um casal de filhos, ela formou-se em Ribeirão Preto, na Faculdade Barão de Mauá. Em seguida, foi trabalhar no Hospital das Clínicas. Por causa do casamento, retornou a Franca e passou a atuar no Laboratório de Análises Clínicas da Santa Casa e no Hospital Infantil. Aprovada em concurso, tornou-se funcionária pública e passou a trabalhar no Laboratório II de Franca, antigo Adolfo Lutz, onde está até hoje.
Quando foi aberto o curso de biomedicina da Unifran, há 11 anos, foi convidada para dar aulas. Hoje, é docente nos cursos de Farmácia, Fisioterapia, Tecnólogo em Estética e Cosmetologia e coordenadora da pós-graduação em Citologia Esfoliativa. É reconhecida entre colegas e alunos por praticar tratamento humanizado.
Roseli acorda todos os dias às 6 horas para dar aula na faculdade. À tarde, atende aos pacientes no laboratório. Normalmente, é quem explica o diagnóstico de doenças graves, como o câncer. “É uma situação muito difícil, uma parte que a gente vem lutando para que seja mais humanizada, porque o diagnóstico tumoral ainda é, para o paciente, uma carta de morte.” À noite, volta à faculdade para dar aulas e só vai dormir por volta da meia-noite.
A biomédica ainda encontra tempo para dar aulas como voluntária no Instituto Agostiniano de Filosofia da Capelinha, para se engajar em campanhas de prevenção ao colo de útero, combate ao diabetes e hipertensão e para fazer palestras para alertar as mulheres sobre o risco que correm ao cometer aborto. Também ajuda a Pastoral do Menor e a Fundação Casa de Franca.
O currículo de Roseli tem 36 páginas e inclui prêmios, moções de de aplauso, 71 resumos publicados em congressos nacionais e internacionais, 65 apresentações de trabalho em eventos científicos, entre outros. A descoberta de um tumor raro em um grupo de trabalhadores rurais de Patrocínio Paulista, há três anos, resultou na publicação de artigo em revista especializada dos Estados Unidos. Na última terça-feira, ela foi homenageada pela Câmara Municipal por sua dedicação à profissão de biomédica e ao próximo.
Comércio - A senhora foi homenageada pela Câmara Municipal pelos 30 anos dedicados à biomedicina. O que representou este reconhecimento público?
Roseli Freitas - Ao longo da história, eu tentei viver estes 30 anos no anonimato, procurei ser uma exímia profissional, trabalhar com qualidade, fazer com que o meu serviço fosse respeitado, mas eu nunca tentei aparecer, nunca me expus na mídia. A homenagem foi um agraciar de Deus, um presente do céu para contemplar estes 30 anos de trabalho.
Comércio - Como é o seu trabalho de biomédica?
Roseli Freitas - No início da minha caminhada, quando trabalhei no Hospital das Clínicas, foi uma realidade muito ímpar. Eu ainda inexperiente, aprendendo os primeiros passos das análises clínicas. Depois eu cheguei à Santa Casa, onde fiquei por 11 anos, sendo três na ala infantil. É aquela realidade de você estar na lida com o paciente, com o profissional médico. É o tentar acertar o máximo possível o diagnóstico. Depois, eu saí das analises clínicas e parti para outro laboratório, que era o da citologia. Foi quando comecei a trabalhar a prevenção do câncer que, hoje, eu creio, é a paixão da minha vida. É a menina dos meus olhos. Hoje, me vejo muito como educadora nesta área tumoral, preparando, educando meus alunos para fazer um diagnóstico digno de confiabilidade.
Comércio - Como é informar ao paciente que ele é portador de uma grave doença?
Roseli Freitas - É uma situação muito difícil, uma parte que a gente vem lutando para que seja mais humanizada, porque o diagnóstico tumoral ainda é, para o paciente, uma carta de morte. Nós ainda estamos num mercado onde temos tratamento, a terapêutica está nos ajudando muito, mas ainda é um diagnóstico muito difícil para o paciente assumir.
Comércio - É neste momento que entra em cena o lado humanitário da professora Roseli...
Roseli Freitas - Eu tenho um perfil muito mãe. Tento fazer um trabalho muito humanizado, chegar bem pertinho do paciente, fazer um trabalho bem em sintonia com o médico. Sou aquele profissional que liga e fala: “Olha, doutor, pode melhorar? O senhor quer que faça mais alguma coisa?”.
Comércio - Em breve, a senhora vai se aposentar. Tem algum momento que ficará guardado na memória?
Roseli Freitas - Tenho inúmeras passagens. Os pacientes tumorais são muito carentes de afetividade, gostam sempre de estar perto da gente. Parece que, quando chegamos, somos os portadores da verdade para eles. O médico dá o diagnóstico, mas fica mais distante. “não, doutora, me explica mais direitinho”. Então, parece que a gente consegue fazer a proximidade com este paciente. Fiz um projeto de pesquisa, dentro do Hospital de Câncer de Franca, com mulheres mastectomizadas, umas com uma mama só, outras sem as duas... Trabalhar com efeito da mutilação e perceber o quanto isto muda a auto-estima, o jeito de ver a vida, os valores pessoais, o quanto a gente pode contribuir, é uma experiência única. É nesta hora que a pessoa precisa pegar na mão de alguém.
Comércio - Durante evento de prevenção na Delegacia da Mulher senhora diagnosticou um câncer em uma mulher que havia sido queimada nas partes íntimas pelo marido. Foi um caso difícil?
Roseli Freitas - Gosto muito de eventos públicos. Se me convidarem para fazer uma campanha, estou dentro. Este contato com o público é um jeito muito fácil e ímpar que a gente tem de educar. Participei de duas campanhas promovidas pela Delegacia da Mulher. Em uma delas, fizemos um diagnóstico de uma pacientinha: quando olhamos no exame macroscópico, percebemos uma lesão com casca, muito ímpar. Chamamos o médico. Ele também não mexeu no material e encaminhou para as unidades básicas, onde foi constatado o tumor. A paciente entrou na rede pública e foi tratada. Foi muito legal ter acompanhado esta mulher. A gente percebeu que ela tinha a liberdade de ir à delegacia, mas tinha vergonha de ir ao médico. Ela havia sido queimada por cigarro, bem no intróito vaginal, era uma lesão muito feia.
Comércio - A senhora teve trabalho publicado em uma revista dos Estados Unidos especializada em odontologia. Como foi esta experiência?
Roseli Freitas - Foi um trabalho social, de rua. Participei de um trabalho de prevenção de câncer de boca em Patrocínio Paulista. Professores e alunos da odonto fizeram o diagnóstico em praça pública. Eles coletaram materiais de lesões pertinentes e encaminharam para a gente. Numa desta leituras, encontrei um fungo chamado “blastomicose”, que é uma infecção pulmonar extremamente significante. Como era algo difícil de acontecer, sugeri ao professor que chamasse o moço para fazer nova coleta. Descobrimos que ele trabalhava na colheita de café e que, durante o período de descanso, mastigava aquele capinzinho, onde o fungo estava. Ele disse que mastigou o capim toda a vida e que todas as pessoas que apanhavam café com ele também mastigavam. Fizemos, então, exames em 22 trabalhadores rurais e 16 tinham a blastomicose. O estudo foi publicado há três anos em uma revista internacional de prevenção de câncer de boca.
Comércio - A senhora ajudou várias alunas que ficaram grávidas durante a faculdade para que não desistissem de ter os filhos. Como é encarar este trabalho?
Roseli Freitas - Sou uma lutadora contra o aborto. Assumi isto como missão. Hoje, falo que já vivi, praticamente, seis casos muito pertinho de alunas que abortariam, que me entregaram os comprimidos que iam beber para abortar. Acabei levantando esta bandeira dentro da universidade e procuro fazer um trabalho em defesa da vida, mostrando os riscos, as consequências e pedindo para as meninas pensarem bem no amanhã. Venho trabalhando com anticoncepção, porque o mundo universitário é um mundo de grande abertura. O convívio com o aluno - já passaram por mim 11 mil alunos - permite a gente ver uma realidade de liberdade mal trabalhada, uma abertura para o mundo das drogas, uma abertura para o mundo do conhecimento.
Comércio - A senhora também é da Pastoral do Menor, batalhou para a vinda da Fundação Casa para a cidade e trabalha com menores infratores. Isso compensa?
Roseli Freitas - É uma coisa custosa (risos), mas eu amo. É um trabalho extraprofissional, mas que faz muito parte do meu eu. Sou membro da Paróquia São Sebastião, trabalho com o padre Ovídio desde o Aeroporto, da creche. Procuro ser educadora, capacitar os profissionais, fazer palestra para as famílias, levar este tipo de orientação. Surgiu a oportunidade de fazer uma parceria com o Estado, com a Pastoral do Menor se transformando numa ONG para trabalhar com os nossos adolescentes. A gente via que o assistencialismo da creche era algo muito fácil de se fazer, apesar da parte financeira ser insuficiente. Partindo dai, para atender aos adolescentes da Fundação Casa, assumi o excluído, mas que também é menor, que também merece ser amado. Não podemos perder nunca a esperança de que podemos construir uma sociedade diferente. Me entristece muito quando vou à Fundação Casa e as pessoas dizem: “Roseli, você não acha que aquilo é lugar de bandido? Você não tem medo de mexer com estas pessoas?” Eu não tenho. Não tenho nenhum entrave para chegar bem pertinho destas pessoas. Tenho muita esperança na transformação. A Pastoral do Menor, com a Fundação Casa, tem sido um trabalho referência no Brasil. O índice de reincidência é muito pequeno. Batalhamos muito para que os seguranças, cozinheiras e professores sejam educadores ali dentro. Gostaria muito de poder me aposentar e trabalhar lá como voluntária num período maior. Sinto que, as poucas vezes que vou lá, o meu carisma me aproxima muito deles e eles acabam me procurando depois quando saem. Não é um trabalho social muito bem aceito, nem fácil.
Comércio - A senhora é funcionária pública, professora em dois períodos e nas horas vagas atua em campanhas de prevenção e em trabalhos sociais. O que a move a dedicar a maior parte do seu tempo ao próximo?
Roseli Freitas - Creio que não posso olhar esta sociedade e ver que é composta por corruptos, que está cheia de opressão e violência. Acredito muito na nossa particularidade, que podemos ser pequenos, que estou fazendo um trabalho pequenininho, mas que eu posso ser um fermento naquela sociedade que pode se transformar e se tornar numa sociedade melhor. Amo ser educadora, amo meus alunos, não tenho medo de desafios e tenho muita esperança. Acredito que, através da educação e do trabalho humano, vamos conseguir fazer uma sociedade nova, um amanhã diferente.