Vanessa Maranha
Psicóloga, jornalista, escritora, autora de As Coisas da Vida e Cadernos Vermelhos
O Bolero de Ravel, novo livro de Menalton Braff, prolífico e versátil ficcionista laureado por importantes prêmios da literatura luso-brasileira, pode ser lido por pelo menos duas lentes.
Pela refração da técnica literária, aperfeiçoa seu estilo elíptico, de livres associações, trabalha com mão de artista a sintaxe, a linguagem, por vezes, levada às últimas consequências.
Seu desenvolvimento parece perseguir a cadência musical do Bolero, de Maurice Ravel, obra-prima que embute longos e obsessivos movimentos tonais intervalados por momentos de clímax. É a música provável radiografia rítmica do psiquismo de Adriano, personagem que, ainda menino, desistiu da escola e da vida conforme os ditames da sociedade, com a anuência condescendente da mãe e a oposição insuficiente do pai e da irmã Laura, caracterizada por ele como vencedora desde sempre, a seguir os passos do pai advogado, aquele que em seu gabinete de “imperador” assinava seus despachos com suas “mãos gordas e peludas” e diariamente “beijava, sem nenhuma fome, a testa da mãe”.
Esses significantes, entre outros, que atravessam repetidamente a narrativa, vão construindo a história de Adriano, que aos trinta e cinco anos perde os pais, mortos num acidente, e se vê às voltas consigo próprio, desamparado e incompetente para a vida autônoma, confrontado com a irmã, já uma advogada casada, pragmática, o seu avesso, ambiguamente rancorosa, lhe cobrando ação e buscando providência para a partilha do que restou.
Pela lente psicanalítica, o personagem, que é, afinal, a própria história, se avulta porque passível de identificações, já que fixado num momento do desenvolvimento humano que lá na infância todos conhecemos. À primeira vista Adriano remete a uma figura autista, psicótica, para, na sequência, ir se mostrando um ser simbiótico que fantasia o estado fusional, inclusive com a irmã.
Na vertente freudiana, Adriano revive continuamente o ‘romance familiar’ edípico, refugiando-se, ainda criança, no leito dos pais e, posteriormente, à brecha sugerida das dificuldades do casal parental, sequestrando a mãe para si, numa cumplicidade que os outros familiares não alcançavam e que pode ter sido a gênese do que adiante se revelará como degeneração psíquica, entremeada por instantes de cortante lucidez, a torná-lo, também por sua fragilidade, um personagem comovente por quem o leitor torcerá relutante: dar-lhe o que ele anseia? Esperar dele alguma redenção?
A figura do pai encarnando a autoridade com suas mãos aracnídeas (tenazes repulsivas, indicam os significantes) acaba rasurada pela mãe, eclodindo na não realização do que o psicanalista francês Jacques Lacan chamou de ‘metáfora paterna’, ou seja, uma operação simbólica fundamental para a estruturação do ser humano, o exercício de uma nomeação que permite à criança adquirir a sua identidade.
A função paterna seria a de representar a lei, como interdição, como corte simbólico da relação fusional com a mãe, dando origem ao ideal do eu na criança. Quando essa estruturação não se dá, conforme Lacan, “a foraclusão do nome-do-pai”, eis a psicose, a reconstrução de uma realidade alucinatória e indelimitada, na qual o sujeito toma-se a si mesmo como objeto de amor, sem alteridade possível.
Em Adriano observa-se apenas o desejo de nada, o ensaio a um adeliano estado-semente, sem escolhas, anódino, sem conflitos, vontade de nunca mais sair da cama, “reduzido a ser, apenas estando”.
O autor acena perspectivas possíveis quando pinta momentos de afetividade e de algum desejo nessa vida mera (é verdade que um desejo retorcido, na fronteira com o perverso), mas, em termos simples, enquanto houver afeto, há um outro e, portanto, a esperança da não imersão na loucura do si mesmo.
Com maestria estética, Menalton Braff conduz seu leitor pelos labirintos de dentro de Adriano lançando nesgas de sol sobre esse sujeito desorientado que é produto de sua história, personagem tão real e atual, que diz não acreditar em vitória porque a morte a contradiz. Um exercício de olhar de fora e de dentro do abismo, simultaneamente, só possível aos grandes narradores.
CONTISTA E ROMANCISTA
Menalton Braff
Menalton Braff é gaúcho de Taquara, onde nasceu em 1938. Casado com Roseli Deienno Braff, colega de faculdade, reside em Serrana, cidade satélite de Ribeirão Preto, desde 1978. Escritor com formação em Letras, alterna seu tempo entre o magistério, a escrita, encontros culturais e palestras. Já esteve em Franca algumas vezes.
Por sua militância política, após o golpe militar de 1964 foi perseguido e obrigado a abandonar o curso de Economia em Porto Alegre, entrando por alguns anos na clandestinidade. Só depois da anistia, quando voltou a usar seu nome verdadeiro, é que buscou o curso de Letras para completar a formação universitária interrompida. Em 1984 publicou seus dois primeiros livros usando o pseudônimo Salvador dos Passos, nome de seu bisavô. Só em 1999 passaria a assinar como Menalton Braff. Nesta nova fase ganha o Prêmio Jabuti com o livro de contos À Sombra do Cipreste. A partir daí sua produção se intensifica. Em 2000 publica o romance Que enchente me carrega? E dois anos depois, Castelos de Papel. Entre contos e romances serão mais onze títulos, até chegar ao livro resenhado ao lado- Bolero de Ravel, de 2010. Profícuo, já tem engatilhados Jardim Europa, contos; Tempo de Espanto e Tapete de Silêncio, romances.
Serviço
Título: Bolero de Ravel
Autor: Menalton Braff
Editora: Gaia
Preço: R$ 29,00
Onde: http://www.livrariacultura.com.br