“A hipocrisia é uma homenagem que o vício presta à virtude”
François de La Rochefoucauld, escritor francês
A ideia é ótima, destas raras unânimes, incapazes de encontrar um único crítico. Distribuir, de graça, livros aos estudantes da rede pública de ensino. Além de clássicos, fazem parte dos títulos selecionados também obras contemporâneas, de maior apelo popular e, portanto, muito mais próximas da realidade e do universo dos jovens de hoje. Tudo muito bom, uma proposta concreta para ajudar a transformar em leitora uma geração pouco acostumada à literatura, à reflexão densa, às descobertas de uma narrativa poderosa.
No meio das diversas obras selecionadas para distribuição aos alunos da rede pública neste ano, uma, em especial, provocou arrepios e úlceras em alguns milhares de pais. O problema, para eles, está na antologia Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século, organizada por Ítalo Moriconi. No meio de textos de autores consagrados como Carlos Drummond de Andrade, Clarice Lispector, Graciliano Ramos, Hilda Hilst, Machado de Assis, Moacyr Scliar, Raduan Nassar e Rubem Fonseca, há um conto, do não menos importante e premiado escritor Inácio de Loyola Brandão, responsável pela furiosa reação que, pelo menos em uma comunidade, transcendeu o protesto e chegou à Justiça. Foi em Jundiaí, onde um grupo de pais de alunos acionou o Ministério Público. Querem que os livros já distribuídos aos estudantes sejam recolhidos.
Obscenidades para uma dona de casa, escrito por Loyola no início dos anos 80, é o conto responsável por toda celeuma. Não é um texto inocente, do tipo que se lê na sala comendo biscoitos com a avó. Em linguagem forte, Loyola Brandão narra as fantasias sexuais de uma típica dona de casa que, para transcender a mediocridade de sua rotina, escreve apimentadíssimas cartas que destina a si mesma. Nesta relação auto-epistolar, sobra espaço para os sonhos mais inconfessáveis da tal senhora, com direito a sexo completamente despudorado. Enquanto o marido joga squash e os filhos bincam num lugar qualquer, a protagonista de Obscenidades... dá vazão a seus fetiches nesta relação muito estranha - e envolvente - que estabelece consigo. O texto é cru e as descrições, detalhadas. Não há espaço para nada difuso.
Aqui em Franca a reação foi bastante parecida com a que houve no resto do Estado. Reclamações, protestos e indignação marcaram o tom da absoluta maioria das manifestações dos pais de alunos. Alguns, mais exaltados, chegaram a sugerir processos contra o escritor e a editora responsável pela publicação da antologia. Houve outros ainda que se mostraram revoltados com o teor do próprio conto, e não apenas com sua distribuição em sala de aula, reservando para o texto de Loyola Brandão adjetivos como “sujo”, “imundo”, “baixo”, “grosseiro”. Apenas uma pequena parcela de pais - e de educadores - defendeu o uso do conto como ferramenta pedagógica.
Loyola Brandão reagiu na mesma medida de seus detratores. Chamou os que defendem o recolhimento do livro de “burros”, “moralistas”, “repressores” e disse que muitos se conformam em ter dois filhos: um, que se comporta de um jeito dentro de casa; outro, que é completamente diferente com os amigos. Disse ainda que os jovens acessam pornografia na internet, além de andarem com camisinhas no bolso e, obviamente, transarem. “Há um mundo novo que essa gente (os pais que condenam seu conto) se recusa a olhar, ver, admitir”.
Loyola Brandão tem razão em quase tudo o que diz, o conto tem inegável qualidade literária e qualquer um que pretenda processar autor de texto ficcional não merece nenhuma consideração. Ainda assim, a pertinenência de utilizar seu texto como base para trabalho pedagógico em sala de aula tem que ser melhor avaliada.
É claro que os jovem transam, com e sem camisinha, naquelas posições que o escritor narra e em outras tantas que a imaginação - e a vontade - permitem. Não são apenas os jovens que agem assim. Os adultos, os mais velhos, os gays... E que ninguém venha defender a idéia enfadonha de que sexo deve ser feito com quaisquer pudores. Nunca foi. Sexo é desejo, prazer, sedução. Nada há na prosa de Loyola Brandão que não seja do conhecimento de todos nós e, no sexo, o único limite a ser observado é o consenso entre os seus praticantes. De resto, vale tudo. Além disso, há que se considerar que em Obscenidades... o sexo não é gratuito. Não se trata de um filme pornô em versão literária. Há um contexto que justifica sua narrativa, há uma razão para tantos detalhes.
Ainda assim, acredito que a sala de aula não é o melhor lugar para que jovens tenham contato com textos como Obscenidades Para Uma Dona de Casa. As classes são muito heterogêneas. Há alunos de todo tipo, com distintos graus de desenvolvimento e maturidade. Há entre eles aqueles que fazem parte de famílias ainda muito tradicionalistas e outros tantos para quem os cânones religiosos são fundamentais. E, por fim e mais importante, poucos são os professores aptos a lidar com um texto como este. Falta preparo, nas mais direta acepção do termo.
A escola pública tem desafios imensos a superar. Há gente analfabeta chegando às universidades, há alunos incapazes de escrever o próprio nome, outros tantos sem a menor noção das operações básicas da matemática. Pode parece absurdo mas vejo gente precisando de calculadora para descobrir que 10% de R$ 1000 equivalem a R$ 100. Isso para não falar dos jovens mal-educados que, sem limites, ousam ameaçar e atentar contra seus mestres, agredir colegas, traficar dentro da escola.
Diante de tantos desafios, a escola pública pode muito bem deixar a leitura de textos como o de Loyola Brandão para a iniciativa de cada aluno, em melhor hora e lugar. Fora da escola, jovens namorados podem descobrir, na intimidade de um quarto - e, de preferência, com o consentimento dos pais - toda a beleza e nuances de Obscenidades.... E, também, quão interessante - e prazeroso - podem ser o sexo e a literatura. Aposto que vai ser bem mais divertido - e inesquecível - do que na sala de aula.
CORRÊA NEVES JÚNIOR
é diretor-responsável do Comércio da Franca jrneves@comerciodafranca.com.br