
Duradoura feito uma moreia, não o peixe, mas a flor cíclica e perene, Marina envergava-se ao terceiro ato da velhice, essa reta quase final, beira de desfecho, o sangue pulsando, contudo.
O marido João, antes cheiroso, tinha agora odor de tralha guardada, roupa puída, poeira, mofo, clausura, odor de escuridão, naftalina. E o hálito com a nota não muito longínqua daquilo que começa a perecer, o destino de carne que apodrece, da pele que se craquela, das vísceras que perdem o frescor, os livores e miasmas.
Passava então, para suportar o cheiro de envelhecimento que no entanto não notava em si, a comprar-lhe perfumes fortemente amadeirados, almíscares e espelhar essência de flores de laranjeira pela casa.
Assim, um beijo, um abraço mais ousado, qualquer torção do tronco eram quase uma operação arriscada de engenharia. Sem as tempestades dos ímpetos.
Então, ao vácuo, havia dias em que Marina sentia vontade de fugir. Não para longe, nem para nunca mais — apenas o suficiente para se esquecer das contas, das juntas doendo, das repetições na fala de João, dos cheiros da casa, de suas próprias impaciências muito ressaltadas após a menopausa que já ia longe. Ele começara a repetir histórias como se uma estação de rádio com defeito, sempre voltando aos mesmos pontos: o dia em que quase foi atropelado por um ônibus, a briga com o irmão que nunca mais viu, a pescaria em que pescou um sapato.
Ela ouvia tudo, balançando a cabeça como quem reza e se resigna e nem ouve mais.
Mas, então, vinham os gestos, o modo como ele ainda, meio às cegas, tateava a beirada da cama procurando a mão dela. A forma como lhe ajeitava a manta nos joelhos, como se ela fosse a única coisa no mundo que não pudesse se resfriar. O cuidado em cortar o pão em fatias finas, para mordedura frágil.
Amor, ali, não era mais vertigem, nem impulso. Era insistência. Algo como uma espécie de fé.
Regar obstinadamente a mesma planta todos os dias mesmo sabendo que, em algum momento, ela deixará de florir, ainda que moreia.
João tinha sonhos. Sonhava com Marina jovem, como se o tempo escorresse para trás. Ela vinha correndo, rindo com os dentes de antes dos implantes que lhe modificaram o desenho do sorriso, os olhos cinzentos faiscando feito um céu chamando em trovoadas luminosas a chuva
Não dizia nada. Apenas olhava para ela com uma ternura de menino, uma admiração que resistia ao tempo, como se cada nova ruga fosse cicatriz de alguma batalha.
E assim viviam. Entre lembranças que emboloravam no armário e densos silêncios. Marina, às vezes pensava que amar era isso: aceitar que o outro fede em vida, mas ainda assim se persigna e não se vai.
Que o tempo rói, mas o essencial — aquilo intocado dentro do relicário — fica.
João sentia que se tornara mais surdo. Ou quem sabe o mundo é que andasse falando mais baixo, o que era improvável, porque sabia que a vida contemporânea seguia em ruído e fúria crescentes.
Havia sons que não queria mais ouvir: o noticiário com sua ladainha de morte e guerra, as rinhas políticas e das vaidades, o gotejar irritante da torneira da cozinha, o tictac do relógio do corredor — aquele que Marina insistia em manter, como se o tempo fosse bicho de estimação.
Preferia o silêncio. E, no silêncio, ouvia melhor o som que Marina fazia ao abrir a gaveta do talco. Sempre o mesmo. Primeiro a puxada lenta, depois o clique da tampa, por fim o leve som dela espalhando pó nas dobras do pescoço, no vão do peito.
Era nesses sons que ele morava agora.
Sabia o exato momento em que ela ficava triste: o jeito como segurava a xícara com as duas mãos de dedos nodosos e tortos feitos galhos pela artrose, os olhos embaçados vidrados em nada, os tendões do pescoço aparentes pela pele solta encovando o colo. E sabia também, quando a coragem de enfrentar suas guerras interiores se assomava: ela se endireitava na cadeira como quem desafia o vento e falava das novelas e séries com a firmeza de quem ainda esperava justiça no último capítulo.
João não tinha mais pressa. Há muito tempo não sabia o que era isso. Desde que a coluna passara a doer para subir degraus e os olhos se embaçaram pela catarata e nunca mais lhe devolveram uma visão perfeita, deixou-se guiar pelos ritmos de dentro — os lentos, os longos, espaçados.
Mas havia, nele, uma inquietação que não se dizia claramente.
Sabia que Marina o perfumava e intuía a razão disso. Que borrifava lavanda nas golas de suas camisas, espalhava incensos pela casa, trocava os lençóis com frequência exagerada. Ela não dizia, e ele não perguntava.
Aceitava o gesto como se aceita a sombra de uma árvore: não se discute com o que ainda abriga.
Às vezes, via o reflexo dela no espelho da sala e se assustava. Não por não reconhecê-la, mas por reconhecer demais. Era a mesma moça de outros tempos — só que agora, com a moldura trocada. A beleza permanecia, mas envolta em uma camada de história que o deixava mais confuso.
Ele não dizia, mas ainda a amava, só que de outro jeito. Um jeito sem fogaréu, mas brasas.
Pensava, em silêncio: "Se eu for primeiro, ela saberá conectar o gás? Vai se lembrar de desligar o ferro?"
E temia que não. Ou temia que sim. Que tudo ela pudesse continuar naturalmente na sua ausência como se ele não tivesse sido tão necessário quanto supunha. Mas temia mais ainda partir por último.
Numa manhã, após sonho agitado, João passou a desconfiar que Marina tivesse um segredo. No fundo dela, algum lugar intocado, ele sabia e ela também, havia algo muito tenro e delicado de vida intensa, algo eterno que jamais se desgastava, que nunca morria nem envelhecia.
Era um pressentimento como o cheiro de chuva prenunciando a primeira gota, ou o silêncio diferente de um cômodo vazio.
Certa tarde, viu quando ela saiu para comprar pão e demorou mais que o costume. Quando voltou, trazia os olhos molhados, mas disse que era alergia. João assentiu, não quis perguntar. Mas à noite, enquanto ela dormia com a boca entreaberta, roncando levemente feito uma flauta cansada, ele pensou: "E se ela tivesse um amante?"
Sorriu com a ideia. Um velho, claro. Nada de galãs. Talvez o farmacêutico, aquele da bengala moderna com gavião entalhado. Ou o professor aposentado que sempre se sentava no banco da praça e fazia palavras cruzadas sem os óculos.
Não era ciúme exatamente. Era um tipo estranho de ficção que lhe trazia emoções contraditórias.
Ele imaginava Marina se arrumando às escondidas, passando batom com a mão trêmula, borrando levemente o contorno dos lábios do sorriso cuja modificação sempre lamentava, o coração acelerado. Figurava um bilhete escondido no bolso da blusa, palavras que sugeriam intimidade e constância:“Vejo você no banco perto da figueira. Como sempre.”
Chegou até a sentir uma pontada no peito, que não era dor, mas um orgulho esquisito. Pensou:
"Ainda há algo nela que desperta desejo. Isso me inclui, de certo modo."
No dia seguinte, foi ele quem demorou na padaria. Passou pela banca de jornal/sebo de livros, essa coisa vintage, comprou uma revista velha só para justificar o atraso. Quando voltou, Marina estava sentada com os olhos semicerrados, olhando pela janela como quem espera algo que não vem mais, uma xícara de chá nas mãos.
Não falou nada, mas, à noite, depois de dois goles de um Porto que ele dizia ser “só para ativar a circulação”, perguntou:
— Marina, você ainda me ama?
Ela segurou mais firmemente a xícara, soprou o chá já frio e disse:
— Às vezes penso que sim. Outras vezes, que apenas me acostumei e me entranhei em você e você em mim. Mas mesmo nos dias em que penso que não, continuo lhe fazendo o café do jeito que gosta, organizando sua vida como se minha.
João olhou para ela com o desconhecimento de quando a viu pela primeira vez.
Na cama, deitou-se ao seu lado, mais próximo do que o habitual e sonhou que traía Marina. Mas, não com uma mulher real — era com uma lembrança talvez mesmo inventada. Uma moça do passado, sem nome nem rosto, vulto de juventude e promessas.
Acordou aflito. Será que ela considerava pensamento ou sonho traições? Virou-se para Marina, que ainda dormia. Olhou-a demoradamente, aquela face vincada de rugas como se fossem mapas fluviais. Pensou em confessar o sonho e até em pedir desculpas.
Sabia: o amor é feito também de fantasias silenciosas.
Traições imaginadas, desejos tardios, pequenas vinganças justificadas por pequenas raivas não elaboradas.
Porque já não há tempo para o escândalo — só para o que está entranhado e misturado, tornado uma coisa única, antiga.
Marina nunca tivera amante.
Mas, ainda, às vezes, se permitia imaginar. Não pela emoção — que já não fazia mais morada nela —, mas pela possibilidade de ter sido outra. Outra mulher, com outros passos, outro destino.
Imaginava-se rindo em um café com um homem que não fosse João. Um viúvo talvez, charmoso, elegante, que conversasse sobre livros e soubesse morrer cedo, para não lhe dar trabalho.
Gostava da ideia de ser desejada por alguém que desaparecesse antes que o desejo virasse obrigação.
Não era infidelidade. Era ensaio. Um devaneio que vinha quando ouvia música nostálgica ou quando João demorava mais que o normal na padaria.
Ela o amava, não tinha dúvidas da reafirmação do amor da velhice. Mas havia dias em que ele parecia uma parte do mobiliário: firme, um
pouco inútil, gasto. E ela, mesmo com a pele frouxa e os joelhos reclamando da escada, ainda se sentia viva por dentro.
Tinha vontades. Não grandes. Às vezes só queria andar descalça até o portão, cortar o cabelo curto, ou simplesmente dançar sozinha no quarto. Mas João a olhava como se qualquer gesto fora da rotina fosse risco, um desvio, algum perigo e então ela se imobilizava, “não inventar moda”.
Naquela noite, depois que ele lhe perguntou se ainda o amava, Marina sentiu uma ternura mais quente por ele, do reasseguramento daquilo que não se quebra, mesmo torto.
E ficou pensando se João também teria suas fantasias. Não ousava perguntar. Mas desconfiava, claro.
Sabia do sonho que ele tivera — ele falava dormindo. Sussurrava um nome que não era o dela, e sorria como não sorria mais há tempos.
Não ficou ofendida. Também sonhava.
Na manhã seguinte, preparou o café com mais deferência. Torradas na manteiga, os ovos mexidos mais cremosos.
Sentou-se à mesa com ele, e por um instante, se olharam como dois cúmplices: cada um carregando seus pequenos delitos invisíveis, suas traições de mentira, seus desejos sem destino.
E ali, em silêncio, acataram tudo.
Aceitaram o cheiro um do outro, as feições desfeitas, os silêncios longos, as pequenas mágoas soterradas pelas décadas, os sonhos abandonados que não se concretizariam.
Aceitaram, sobretudo, que o amor dos velhos não se sustenta em ardor, nem tampouco, pureza, nem mesmo de eternidade: é feito de teimosia.
De continuar, mesmo depois da chama.
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