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NOSSAS LETRAS
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Kant estava errado
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Pertenço à geração Baby Boom. Nasci no século passado, três anos depois do fim da Segunda Guerra. O mundo estava tentando se reconstruir. Leia o artigo de Sonia Machiavelli.
Pertenço à geração Baby Boom. Nasci no século passado, três anos depois do fim da Segunda Guerra. O mundo estava tentando se reconstruir. Leia o artigo de Sonia Machiavelli.
Por Sonia Machiavelli | 04/11/2023 | Tempo de leitura: 5 min
Especial para o GCN/Sampi Franca
Por Sonia Machiavelli
Especial para o GCN/Sampi Franca
04/11/2023 - Tempo de leitura: 5 min

Pertenço à geração Baby Boom. Nasci no século passado, três anos depois do fim da Segunda Guerra. O mundo estava tentando se reconstruir. O conflito terminara com milhões de mortos no front e nas cidades; a revelação do Holocausto; o pavor causado pela bomba atômica; um grande contingente de refugiados por toda parte.
Neste contexto não foi tão bizarro, como possa parecer, que escolhessem para minha madrinha uma tcheca que não cheguei a conhecer. Refugiada na São Paulo que acolheu milhares no pós-guerra, ela já era idosa quando me levou à pia batismal. Alguns anos depois, entendendo o que diziam os adultos sobre ela, aprendi que era judia, tinha sido cantora de ópera em Budapeste, perdera o filho único num campo de concentração. E para não morrer de fome, tinha comido galhos de árvore ralados. Essas imagens nunca me abandonaram, fazem parte do meu repertório de coisas ouvidas que fizeram nascer meu espanto diante das guerras.
Acrescentadas às coisas escutadas, viriam as coisas lidas. Na escola, orientada por bons professores de História, conhecemos no ginasial “O diário de Anne Frank”. Aos poucos, lendo também jornais e revistas, fui desvelando aos poucos os antagonismos do mundo. Cheguei ao curso Normal com a impressão de que depois dos horrores da Segunda Guerra os homens tinham se aquietado. Só que não.
Um conflito cruento dividia o mesmo povo, um do norte e outro do sul. Era a Guerra do Vietnam, que se arrastou cada vez mais hedionda. Eu já estava na universidade quando a foto da menina nua com o corpo em chamas, correndo por uma estrada perto de Hanoi, rodou o mundo. O uso de armas químicas, patrocinadas pelos EUA (que se envolveram no confronto por conta da polarização da Guerra Fria), era algo assombroso. Diante de tanta crueldade, jovens e artistas do mundo inteiro se mobilizaram contra a guerra que já tinha matado dois milhões de seres.
Mal terminou esta longa e encarniçada luta na Ásia, que eu então acompanhava com mais frequência nas transmissões de rádio, irrompeu no Camboja outro confronto fratricida. Sob o comando do cruel ditador Pol Pot, foram massacrados mais de dois milhões de humanos. O genocídio voltava a assombrar a humanidade. Na África, rolavam cabeças no chão de Angola; e nos domínios dos tutsis, a violência chegava a níveis surreais. No Oriente Médio, qualquer fagulha no mundo árabe era sinal de incêndio. Do outro lado, povos da antiga Iugoslávia – sérvios, croatas e muçulmanos bósnios –literalmente se trucidavam. Nesta época eu já havia deixado o magistério e estava na redação do Comércio da Franca, onde o contato com as notícias era vasto e intenso.
Entre 1991 e 2001, os ponteiros do relógio do Apocalipse se afastaram da tragédia atômica. Parecia que enfim vislumbrávamos um mundo novo. Mas a curta década de paz acabou na manhã do dia 11 de setembro com o atentado às Torres Gêmeas. Surgia um diferente tipo de guerra marcada pelo Terror, que no último 7 de outubro voltou a emergir de forma inédita e bárbara. O grupo terrorista Hamas, que domina a Faixa de Gaza, entrou no território de Israel e mostrou sua pior face. Horas depois Israel reagiu.
Divididos por um antagonismo ancestral, de base religiosa, cultural e geográfica, judeus e muçulmanos travam há mais de três semanas uma guerra horrenda e sem perspectivas de tréguas. Em casa, acompanho o noticiário na TV e as cenas que vejo, muitas vezes em transmissões ao vivo, me fazem lembrar de Clarice Lispector: “A realidade supera qualquer ficção”.
São crianças em estado de choque, olhos parados, voz emudecida. Recém-nascidos em estufas de hospitais em ruínas. Homens chorando copiosamente no meio das pedras que um dia formaram as paredes de suas casas. Pais e mães sufocados pela angústia em busca de notícias de filhas e filhos sequestrados. Filhos e filhas e netos e netas e parentes e amigos com cartazes e fotos à procura de seus queridos. A mulher que ergue os braços para o alto e grita: “perdi três filhos!”. O rapaz que se desespera ao identificar o corpo de sua mãe. E os que estão cansados das bombas e dizem exaustos: “Não vou fugir mais, vou ficar aqui.”
Civis palestinos e israelenses estão sofrendo muito além do que possamos imaginar com o coração apertado mas no conforto de nossos lares. Para quem se sente como eu, em clima de perplexidade, aconselho a série “Fauda”, no canal Netflix. A palavra do título significa caos, tanto em árabe quanto em hebraico. É o termo que estamos ouvindo a todo momento na cobertura da guerra. Lançada em 2019, a série tem tom profético ao mostrar israelenses infiltrados em Gaza para descobrir quem são os dirigentes do Hamas. O diretor, também protagonista, foi tão fidedigno na abordagem que recebeu elogios de ambos os lados, algo raro. As filmagens foram todas realizadas na Faixa de Gaza, o que nos permite ver, entre outras coisas, a precariedade da vida dos palestinos.
Tendo vivido sete décadas, andei fazendo um balanço das guerras de que me lembro e acompanhei como espectadora distante. Quase me esqueço, talvez por excesso de informação, das que feriram a Síria, o Afeganistão, o Iraque... E desta outra, contemporânea, a da Ucrânia atacada pela Rússia.
Quando jovem, fiquei entusiasmada com a leitura de Immanuel Kant (1724-1804) e seu conceito de Paz Perpétua, para ele algo a ser alcançado como resultado dos processos históricos, dos estados organizados pela lei, dos governos republicanos, da cooperação internacional. Com o tempo fui percebendo que o otimismo humanista do filósofo e sua esperança em uma paz duradoura, sem rupturas, mostraram-se uma ilusão.
Hoje chego à conclusão de que o ser humano ainda precisará de muito tempo para se desenvolver subjetivamente, a ponto de ser capaz de protagonizar convivências pacíficas. Até lá, viverá entre guerras. Se é que a última delas não coloque fim à nossa espécie.
Pertenço à geração Baby Boom. Nasci no século passado, três anos depois do fim da Segunda Guerra. O mundo estava tentando se reconstruir. O conflito terminara com milhões de mortos no front e nas cidades; a revelação do Holocausto; o pavor causado pela bomba atômica; um grande contingente de refugiados por toda parte.
Neste contexto não foi tão bizarro, como possa parecer, que escolhessem para minha madrinha uma tcheca que não cheguei a conhecer. Refugiada na São Paulo que acolheu milhares no pós-guerra, ela já era idosa quando me levou à pia batismal. Alguns anos depois, entendendo o que diziam os adultos sobre ela, aprendi que era judia, tinha sido cantora de ópera em Budapeste, perdera o filho único num campo de concentração. E para não morrer de fome, tinha comido galhos de árvore ralados. Essas imagens nunca me abandonaram, fazem parte do meu repertório de coisas ouvidas que fizeram nascer meu espanto diante das guerras.
Acrescentadas às coisas escutadas, viriam as coisas lidas. Na escola, orientada por bons professores de História, conhecemos no ginasial “O diário de Anne Frank”. Aos poucos, lendo também jornais e revistas, fui desvelando aos poucos os antagonismos do mundo. Cheguei ao curso Normal com a impressão de que depois dos horrores da Segunda Guerra os homens tinham se aquietado. Só que não.
Um conflito cruento dividia o mesmo povo, um do norte e outro do sul. Era a Guerra do Vietnam, que se arrastou cada vez mais hedionda. Eu já estava na universidade quando a foto da menina nua com o corpo em chamas, correndo por uma estrada perto de Hanoi, rodou o mundo. O uso de armas químicas, patrocinadas pelos EUA (que se envolveram no confronto por conta da polarização da Guerra Fria), era algo assombroso. Diante de tanta crueldade, jovens e artistas do mundo inteiro se mobilizaram contra a guerra que já tinha matado dois milhões de seres.
Mal terminou esta longa e encarniçada luta na Ásia, que eu então acompanhava com mais frequência nas transmissões de rádio, irrompeu no Camboja outro confronto fratricida. Sob o comando do cruel ditador Pol Pot, foram massacrados mais de dois milhões de humanos. O genocídio voltava a assombrar a humanidade. Na África, rolavam cabeças no chão de Angola; e nos domínios dos tutsis, a violência chegava a níveis surreais. No Oriente Médio, qualquer fagulha no mundo árabe era sinal de incêndio. Do outro lado, povos da antiga Iugoslávia – sérvios, croatas e muçulmanos bósnios –literalmente se trucidavam. Nesta época eu já havia deixado o magistério e estava na redação do Comércio da Franca, onde o contato com as notícias era vasto e intenso.
Entre 1991 e 2001, os ponteiros do relógio do Apocalipse se afastaram da tragédia atômica. Parecia que enfim vislumbrávamos um mundo novo. Mas a curta década de paz acabou na manhã do dia 11 de setembro com o atentado às Torres Gêmeas. Surgia um diferente tipo de guerra marcada pelo Terror, que no último 7 de outubro voltou a emergir de forma inédita e bárbara. O grupo terrorista Hamas, que domina a Faixa de Gaza, entrou no território de Israel e mostrou sua pior face. Horas depois Israel reagiu.
Divididos por um antagonismo ancestral, de base religiosa, cultural e geográfica, judeus e muçulmanos travam há mais de três semanas uma guerra horrenda e sem perspectivas de tréguas. Em casa, acompanho o noticiário na TV e as cenas que vejo, muitas vezes em transmissões ao vivo, me fazem lembrar de Clarice Lispector: “A realidade supera qualquer ficção”.
São crianças em estado de choque, olhos parados, voz emudecida. Recém-nascidos em estufas de hospitais em ruínas. Homens chorando copiosamente no meio das pedras que um dia formaram as paredes de suas casas. Pais e mães sufocados pela angústia em busca de notícias de filhas e filhos sequestrados. Filhos e filhas e netos e netas e parentes e amigos com cartazes e fotos à procura de seus queridos. A mulher que ergue os braços para o alto e grita: “perdi três filhos!”. O rapaz que se desespera ao identificar o corpo de sua mãe. E os que estão cansados das bombas e dizem exaustos: “Não vou fugir mais, vou ficar aqui.”
Civis palestinos e israelenses estão sofrendo muito além do que possamos imaginar com o coração apertado mas no conforto de nossos lares. Para quem se sente como eu, em clima de perplexidade, aconselho a série “Fauda”, no canal Netflix. A palavra do título significa caos, tanto em árabe quanto em hebraico. É o termo que estamos ouvindo a todo momento na cobertura da guerra. Lançada em 2019, a série tem tom profético ao mostrar israelenses infiltrados em Gaza para descobrir quem são os dirigentes do Hamas. O diretor, também protagonista, foi tão fidedigno na abordagem que recebeu elogios de ambos os lados, algo raro. As filmagens foram todas realizadas na Faixa de Gaza, o que nos permite ver, entre outras coisas, a precariedade da vida dos palestinos.
Tendo vivido sete décadas, andei fazendo um balanço das guerras de que me lembro e acompanhei como espectadora distante. Quase me esqueço, talvez por excesso de informação, das que feriram a Síria, o Afeganistão, o Iraque... E desta outra, contemporânea, a da Ucrânia atacada pela Rússia.
Quando jovem, fiquei entusiasmada com a leitura de Immanuel Kant (1724-1804) e seu conceito de Paz Perpétua, para ele algo a ser alcançado como resultado dos processos históricos, dos estados organizados pela lei, dos governos republicanos, da cooperação internacional. Com o tempo fui percebendo que o otimismo humanista do filósofo e sua esperança em uma paz duradoura, sem rupturas, mostraram-se uma ilusão.
Hoje chego à conclusão de que o ser humano ainda precisará de muito tempo para se desenvolver subjetivamente, a ponto de ser capaz de protagonizar convivências pacíficas. Até lá, viverá entre guerras. Se é que a última delas não coloque fim à nossa espécie.
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Andreas Konder
05/11/2023Serafim
05/11/2023