NOSSAS LETRAS

Mãe é sucessão de esperas

'Ela espera, caindo de cansaço, pelo sono que especialmente nesta noite demora a cerrar os olhos infantis. Mãe sempre espera.' Leia o artigo de Sonia Machiavelli

Por Sonia Machiavelli | 13/05/2023 | Tempo de leitura: 4 min
Especial para o GCN

Mãe espera sempre. Espera pelo resultado do teste para ver se está mesmo esperando. Espera pelos primeiros movimentos dentro de seu útero, sentindo a vida que se constrói. Espera pelo ultrassom que vai revelar o sexo do bebê.  Espera a barriga crescer: nove meses alargando vestidos e compondo o enxoval com peças miúdas. Espera o tempo todo com incontida ansiedade: será que vai dar tudo certo? Espera o parto a termo, sem saber se dará conta das contrações ou se o bisturi precisará ser convocado. E quando nasce a filha, o filho, espera aflita pela resposta à pergunta que faz: doutor, tudo bem? Depois, tudo continuará sendo uma sucessão de esperas.

Mãe espera que o umbigo cicatrize para enterrar o toco do cordão no quintal da casa, na doce ilusão de que assim o rebento estará sempre vinculado ao lar. Espera que a amamentação transcorra tranquila e seu leite sustente o bebê por muitos meses ou pelo menos até que os primeiros dentes irrompam. Espera que ele firme a cabeça no tempo previsto, role no berço, sente-se sem ajuda, engatinhe e comece a andar. Espera que não caia nessa primeira aventura na vertical, mas se cair, não se machuque, e se machucar-se, seja apenas um dodói. Espera que não fique doente, mas se as doenças da infância o acometerem, permanece dia e noite ao seu lado, até a saúde ser restaurada.

Mãe espera pelos mesversários e pelo primeiro ano:  o bolo, as balas, a velinha acesa para ser apagada ao som do “Parabéns a você”. Espera pelo flash que vai registrar o dedinho indicador erguido marcando a data. Então espera pelo segundo, terceiro, quarto dedos.  Pela mãozinha espalmada a contar os cinco anos. Mas bem antes disso terá esperado pelos primeiros ruídos vocais, sons que formam sílabas que viram palavras que constroem frases que viram histórias. Terá esperado pelas brincadeiras, pela maneira como a criança se relaciona com os outras de sua idade, até pelas inevitáveis disputas por brinquedos, atenção, colo. E ao final de um dia estafante, ela espera, caindo de cansaço, pelo sono que especialmente nesta noite demora a cerrar os olhos infantis.

Mãe espera pelo primeiro dia de aula: as horas encompridadas pela ansiedade: será que vai estranhar? Depois espera as lições de casa, acompanha, ajuda a resolver dúvidas e se emociona quando vê os rabiscos se transformando no próprio nome, no dela, do pai, dos irmãos, parentes, amigos. Espera pela completa alfabetização e se emociona com o recebimento do primeiro livro. Espera pelas perguntas curiosas ou sérias  para as quais nem sempre tem  respostas objetivas. Espera pelo retorno na  primeira saída mais longa, a casa do amigo do bairro: parece que  está demorando tanto a voltar! Espera que se saia bem ao andar de bicicleta, que goste de esportes, que aprenda logo as regras da boa convivência e do respeito mútuo. Espera que compreenda a diferença entre o competir e o participar.

Mãe espera que seu filhote vá bem nas provas, passe de ano, conclua o ensino médio, sagre-se vitorioso no vestibular. Como sofre a mãe à espera dos resultados do vestibular! Controlando a ansiedade ela espera junto, disfarçando quanto possa: se não for dessa vez, será na próxima, haverá outra, oras! Mãe espera que o filho ou filha escolham profissão de que gostem, conquistem amigos para guardar dentro do peito, cultivem sonhos e lutem para realizá-los. Mãe espera que não tenham medo de enfrentar a vida e saibam transpor obstáculos. Mãe espera que eles lhe dêem um beijo ao sair e outro ao voltar. Mãe espera sempre por essa volta. Nas madrugadas, quando eles saíram com amigos e não disseram exatamente para onde iriam porque não são mais criancinhas, ela espera, espera, espera. Ouve o relógio tiquetaquear, uma sirene soar, o silêncio pesar. E quando percebe o ruído da chave girando na fechadura, é como se ouvisse a Nona Sinfonia: só então relaxa e dorme.

Mãe espera que filha ou filho façam escolhas corretas, dentro do equilíbrio, do respeito, da lei, da consciência de que cada um deve ao mundo sua parcela de colaboração, uma singular contribuição. Mãe espera que os filhos sejam livres, saibam usar suas asas, voem alto quando sentirem que podem, mas nunca esqueçam suas raízes. Mas ela aprende com o passar dos anos que não há qualquer garantia de que suas expectativas se cumpram. Porque sendo a vida transitiva e os seres humanos impermanentes, o controle é absoluta ilusão. Mesmo assim, ela continua a esperar por novos eventos na vida dos filhos. Até que lá um belo dia, é a filha que começa a esperar. E no  instante glorioso do nascimento, quando todo mundo está de olho no bebê recém-nascido, a mãe da mãe enxerga primeiro a filha recém-parida. A avó virá depois.

PS- Crônica publicada no livro “Uma bolsa grená”, de 1999.

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1 COMENTÁRIOS

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  • Daniela
    20/05/2023
    Lindo ????????????