NOSSAS LETRAS

A dependência do celular entre crianças e jovens

Ando preocupada com uma situação que tem reiteradas vezes me chegado através de queixas de avós, pais e educadores com quem mantenho contato. Leia o artigo de Sonia Machiavelli.

Por Sonia Machiavelli | 04/03/2023 | Tempo de leitura: 5 min
Especial para o GCN

Ando preocupada com uma situação que tem reiteradas vezes me chegado através de queixas de avós, pais e educadores com quem mantenho contato. É o seguinte: netos, filhos e alunos, ainda na infância ou entrados na adolescência, gastam grande parte do dia (e da noite) com os olhos na tela do celular. Estão perdendo com ele horas demais, tempo que seria precioso para estudar, conversar, interagir com familiares e amigos. E, o que tem me assustado também, tempo que deveria ser destinado a ler livros, começar a construir um repertório. Ler, sabemos nós adultos que valorizamos a leitura, é ato que precisa de insistência até se tornar hábito. Ou seja, demanda no início algum esforço, com raras exceções. E pede concentração o tempo todo. Tudo que o celular obsta.

Dizem que na história da humanidade somos, os deste século, a geração que mais lê. Mas, lê o quê? Textos curtos, porque os chamados “textões”, quando superam 300 caracteres, são abandonados antes da metade; mensagens infantilizadas ilustradas por desenhos; notícias da meteorologia; fofocas de artistas ou das realezas que ainda sobrevivem; dietas de emagrecimento; muitas fake news em tempo de eleições. Etc. Também dizem que o índice de analfabetismo no Brasil é de apenas 6%; não importa se 40% dos considerados alfabetizados não conseguem escrever um bilhete com clareza ou ler e interpretar um texto de duzentas palavras. Então, seria necessário um esforço gigantesco para reverter essa situação empobrecedora.

E é aí que o celular mais tem desempenhado papel de vilão, com sua potencial capacidade dispersiva. Porque ler o que importa, o que leva à reflexão sobre a vida e o mundo, o que desvela outras realidades, o que renova ideias, o que incomoda e derruba preconceitos, injustiças e opressões, o que faz sonhar e alimenta sonhos, o que nos torna humanos melhores ... implica esforço e concentração. O aparelho pode dar acesso a textos, resolver dúvidas sobre sinonímia, ortografia, léxico e sintaxe, exibir imagens de escritores, mostrar paisagens de época. Mas além não vai, porque a sedutora tela luminosa não permite o foco, a atenção continuada. Pincei o exemplo da leitura porque sou apaixonada por literatura e minha experiência docente de décadas me permite, acredito, comentar o tema. Mas a queixa é geral e abrange todas as matérias, incomoda todos os professores, perturba a maioria dos pais. O declínio das notas tem sido um indicativo concreto da queda na aprendizagem.

Não estou demonizando o celular, que se tornou onipresente, melhorou muito a vida cotidiana, encurtou distâncias, permitiu acesso a coisas excelentes, ampliou conhecimentos sobre vários campos, trouxe o mundo para mais perto de nós. Também não estou sugerindo que ele deva ser banido da vida de quem quer que seja. Mas é certo que seu pouco tempo de existência só agora está nos permitindo perceber com clareza qual tem sido sua influência sobre  crianças e adolescentes a ele submetidos desde seus  primeiros anos.

Aparelho mágico, de fortes apelos à distração, com um multiverso sedutor, o celular estimula áreas do cérebro que clamam cada vez mais por prazer. O processo é o mesmo que vicia um humano em álcool, nicotina, drogas, jogos, açúcar, chocolate etc. É vasto o número de coisas, objetos e substâncias viciantes neste mundo em que vivemos. Ouço falar de meninos e meninas que burlam a vigilância dos pais e passam a noite jogando ou vendo tutoriais, vídeos, novidades do TikTok: no dia seguinte estão insones e vão para a escola mal-humorados. Contam-me sobre adolescentes que eram tranquilos e se tornaram agitados e violentos à simples menção de ter o aparelho retirado de seu cotidiano. O problema é grave: uma especialista em saúde mental me disse que para “desmamar” do celular um menino de onze anos, uma psicóloga começou a ir até sua casa para atendê-lo, pois ele se recusava a sair à rua. Estava viciado. Ou dependente? A diferença semântica é sutil. Crianças e adolescentes estão dependentes do celular ou estão viciadas nele? Aqui lembro a etimologia latina da palavra vício: defeito.

Não tenho formação em psicologia, mas como observadora do mundo acho que o sinal vermelho está piscando e em muitos casos será necessário apelar mesmo para o “desmame”, tais os efeitos que a abstinência pode provocar. É tudo muito novo nessa área em que a tecnologia vem se expandindo rapidamente e se impondo aos humanos, seus criadores.

A princípio, e de forma leiga, acredito que o dependente/viciado deverá ser esclarecido para o fato de que está sendo dominado pelo celular, o que geralmente ele nega. Depois, precisará aprender a controlar seus impulsos em relação ao uso contínuo do aparelho. Isso pressupõe diálogo, afeto, compreensão da parte dos pais. E exemplo, porque é inequívoco que há muitos pais e mães viciados em celular; estes não têm condição de fazer cobranças aos filhos.

De toda forma, não será no grito que se resolverá o problema. Por outro lado, caso pais e filhos cheguem a um acordo sobre o período em que o celular há de ser liberado, é essencial mostrar firmeza.  São tarefas difíceis e cabe aos responsáveis ajudar a empreendê-las, sob risco de, omitindo-se, prejudicar a formação dos que estão sob seus cuidados. Toda dependência é nefasta porque contraria a liberdade individual, bem precioso demais para ser perdido tão cedo.

O desafio é grande, mas faz parte do educar para a vida.

Post Scriptum.
Profissionais ligados à saúde mental deveriam escrever mais sobre esse problema que vem angustiando educadores e pais. Seriam textos de utilidade pública, tenho certeza. Este espaço está à disposição. Contato: sonia@comerciodafranca.com.br

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