PATRIMÔNIO

Saud alega erro jurídico e anula decreto que fazia o tombamento integral da Casas Pias

Com medida, apenas a área da capela do antigo asilo continua tombada; medida não foi discutida com entidades e órgãos envolvidos no tombamento do imóvel, alvo de disputa judicial

Por Julio Codazzi | 30/01/2023 | Tempo de leitura: 5 min
Taubaté

Divulgação/Preserva Taubaté

Imóvel da antiga Casas Pias. Ao fundo é possível ver a capela e as torres construídas pela Ergplan
Imóvel da antiga Casas Pias. Ao fundo é possível ver a capela e as torres construídas pela Ergplan

O prefeito de Taubaté, José Saud (MDB), editou um decreto que anula o tombamento integral do Conjunto Vicentino, conhecido como Casas Pias, que fica na região central do município.

O decreto, publicado no último fim de semana no diário oficial, pegou de surpresa as entidades e órgãos envolvidos nas discussões sobre o tombamento do imóvel, que era considerado patrimônio histórico, arquitetônico e cultural do município.

Questionado pela reportagem, o governo Saud alegou que o decreto que havia feito o tombamento integral da Casas Pias foi anulado porque "tinha inconstitucionalidade e por isso precisou ser revisto". A gestão emedebista, no entanto, não detalhou qual seria a ilegalidade na norma. A Prefeitura também não explicou por que a proposta de anulação do tombamento não foi encaminhada para debate no Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Artístico, Urbanístico, Arqueológico e Arquitetônico.

CASAS PIAS.
Fundado em 1908, o complexo da Casas Pias abrigou um asilo até abril de 2012, quando as atividades no local foram encerradas. Antes, em 2007, a SSVP (Sociedade São Vicente de Paulo) iniciou o processo de venda do imóvel, que fica entre as ruas Quatro de Março e Barão da Pedra Negra, para a construtora Ergplan.

Em 2010, a Prefeitura aprovou o projeto da empresa para a construção de um prédio no local. Emitido em setembro de 2012, o alvará de construção gerou protestos e, após intensa mobilização popular, em novembro do mesmo ano o então prefeito Roberto Peixoto decretou o tombamento da parte do imóvel onde existe uma capela.

Como o tombamento era apenas na região da capela, a construtora chegou a erguer duas torres no imóvel. Em março de 2016, no entanto, o então prefeito Ortiz Junior ampliou a área tombada do imóvel. Além da área da capela, que tem 492 metros quadrados, o tombamento passou a abranger também o pátio e 16 pequenas casas remanescentes do antigo asilo. Com isso, a área tombada chegou a 2,2 mil metros quadrados - nessa área que foi tombada, a Ergplan iria construir a garagem do prédio residencial. O decreto de Saud anulou apenas o decreto de Ortiz, que ampliava a área tombada.

JUSTIÇA.
Desde novembro de 2012, quando a área da capela foi tombada por Peixoto, a Defensoria Pública move uma ação na Justiça para exigir que o local seja preservado pela Prefeitura e pela Ergplan. Nesse processo, em 2016, o imóvel foi avaliado em R$ 7,2 milhões. Em agosto de 2022, o governo Saud e a construtora solicitaram a realização de uma audiência de conciliação. Na audiência, em novembro passado, foram apresentadas propostas de acordo. Ficou definido que as partes se manifestariam em nova audiência, agendada para o próximo dia 17.

O defensor público Wagner Giron disse estranhar o decreto de Saud que anula o tombamento integral do conjunto. "Eu fiquei surpreso com esse novo decreto, mas, a fim de obstruir essa ação, ele não tem validade jurídica nenhuma, pois temos uma liminar do Tribunal de Justiça desde 2013 para manter distanciamento do bem tombado, para evitar qualquer tipo de atividade que possa aluir o imóvel, deteriorá-lo".

Na proposta de acordo apresentada pela Defensoria em novembro passado, a Ergplan teria que restaurar a capela e também as 16 casas que eram utilizadas pelo antigo asilo. Após o restauro, caberia à Prefeitura dar ao espaço "destinação pública de caráter cultural-religioso". "Esse decreto [editado por Saud], para fins da ação, trata-se de inovação no curso do processo, no intuito de tentar prejudicar a análise do mérito, sem comunicar a parte contrária autora, que é a Defensoria, e com certeza não ter validade jurídica nenhuma, pois aparentemente é inconstitucional", disse o defensor.

CONSELHO.
O tombamento integral do conjunto, que havia ocorrido em março de 2016, foi feito com base em análise do Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Artístico, Urbanístico, Arqueológico e Arquitetônico, que na época apontou o risco de "perda de identidade do cidadão para com o espaço urbano" caso o imóvel não fosse preservado.

A decisão de Saud de anular o decreto de 2016 não foi submetida ao conselho. "Eu e todo o conselho só ficamos sabendo desse decreto hoje [segunda-feira]. Não fomos consultados sobre isso. Nós não sabíamos nem que havia essa possibilidade", disse o presidente do conselho, Benedito Assagra. "Não entendi o decreto, qual seria a inconstitucionalidade do tombamento. O tombamento nao é uma condenação, é um prêmio para o edifício. Não se tomba porque é ruim, e sim porque existe uma qualidade", completou.

A reportagem tentou contato com o responsável pela Ergplan nessa segunda-feira (30), mas ele não se manifestou sobre o caso até o fechamento do texto.

REVISÃO.
Em 2021, em seu primeiro ano como prefeito, Saud solicitou que o Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Artístico, Urbanístico, Arqueológico e Arquitetônico fizesse a revisão dos processos de todos os bens tombados na cidade. Sem apresentar qualquer prova, o emedebista disse suspeitar que alguns bens tivessem sido tombados de forma indevida. Criticada por especialistas e entidades que atuam na área de preservação do patrimônio, a proposta está praticamente parada, já que o conselho alegou não possuir corpo técnico para isso.

Na esfera municipal, são 36 bens, que foram tombados no período de 1985 a 2020. Desses, 29 são imóveis. Na esfera estadual, são oito os bens tombados pelo Condephaat (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico), que é subordinado à Secretaria da Cultura. Na esfera federal, são dois os bens tombados pelo Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), vinculado ao Ministério do Turismo.

O prefeito pode, por decreto, revogar apenas um tombamento municipal. Foi o que Saud fez agora com relação ao conjunto da Casas Pias. Mas o município não tem competência para alterar tombamentos feitos por Condephaat e Iphan.

Fale com o GCN/Sampi! Tem alguma sugestão de pauta ou quer apontar uma correção?
Clique aqui e fale com nossos repórteres.

Receba as notícias mais relevantes de Franca e região direto no seu WhatsApp
Participe da Comunidade

COMENTÁRIOS

A responsabilidade pelos comentários é exclusiva dos respectivos autores. Por isso, os leitores e usuários desse canal encontram-se sujeitos às condições de uso do portal de internet do Portal SAMPI e se comprometem a respeitar o código de Conduta On-line do SAMPI.