26 de dezembro de 2024
OPINIÃO

Nossos legados podem transcender a nossa finitude?

Por Francisco Estefogo | docente da Universidade de Taubaté e da FATEC-Taubaté. Também é pós-doutorando em Filosofia da Linguagem na UNIFESP e na PUCSP.
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O aforismo de Andy Warhol (1928-1987), artista visual norte-americano de relevo do movimento estampado numa das paredes do simpático, acolhedor e “petit” museu Moco em Roterdam, Holanda, alude ao cotejo humano concernente aos limites da mortalidade por meio da criação. Nessa toada, Warhol, ao explorar o cipoal de possibilidades da arte e da cultura pop, suscita uma pulsão intrínseca da humanidade: a tentativa da imortalidade não pela existência física, mas pelos legados que podemos deixar. Em diálogo, a máxima de Lorenzo Villalonga (1897-1980), escritor e psiquiatra espanhol, a saber, “o presente é apenas um ponto entre a ilusão e a saudade”, possibilita uma visão mais nostálgica e subjetiva do tempo, na qual o presente se revela como uma intersecção fugaz entre o desejo do que virá e os, muitas vezes, fardos do que já passaram. Essas duas perspectivas se convergem ao viabilizarem reflexões acerca da fragilidade e efemeridade do tempo, questionando, de um lado, como podemos lidar com nossa inexorável finitude, e do outro, como podemos usar a nossa potência para fincar raízes na posterioridade.

Assentados no lirismo de Warhol e Villalonga, podemos recorrer a pensadores como Heidegger (1889-1976), filósofo e escritor, que, na emblemática obra Ser e Tempo explora o conceito de “ser-para-a-morte”. De acordo com o professor e reitor universitário alemão, a existência humana está profundamente marcada pela finitude. Em outras palavras, trata-se do entendimento de que a morte é o horizonte inevitável de nossas vidas. Warhol, ao propor que criemos rubricas que se perpetuem infinitamente, sugere maneiras de contornar essa imanente realidade, não ao evitar a morte, mas ao projetar nossa subjetividade no mundo por meio de um fenômeno ou um artefato que transcenda nossa presença física. Contudo, Villalonga nos lembra que o presente, esse intervalo fugidio entre a ilusão e a saudade, nunca é fixo, pois, por natureza, é instável e efêmero. A considerar a noção de tempo no que diz respeito à sua duração, à luz do pensamento de Henri Bergson (1859-1941), filósofo e diplomata francês, laureado com o Nobel de Literatura de 1927, é possível afirmar que o presente não é um ponto estável, mas uma corrente contínua de transformações. Segundo Bergson, o tempo real não deveria ser medido quantitativamente, como uma sequência cronológica de instantes separados, mas qualitativamente, em relação às experiências fluidas e dinâmicas, que estarão sempre em mutação. Portanto, qualquer criação que vise "durar para a eternidade" também está sujeita à erosão temporal, à reinterpretação, à transformação contínua e a novas perspectivas de entendimento. 

Sob a hodierna moldura de um tecido social amplamente esgarçado, a tecnologia, de algum modo, enseja o que Warhol considerou: a possibilidade de deixar rastros permanentes. A cultura digital, as redes sociais, a inteligência artificial e a proliferação de dados podem gerar momentos epifânicos de imortalidade, visto que podemos deixar vestígios eternos no ciberespaço. Contudo, Zygmunt Bauman (1925-2017), sociólogo e filósofo polonês, a partir do conceito da modernidade líquida, advoga que, como vivemos em um tempo e espaço em que tudo é fluido, instável e passageiro, mesmo se consolidássemos nossas impressões digitais, nossos feitos não teriam ressonâncias imutáveis, visto que as nossas criações e as identidades se dissolvem rapidamente. As plataformas digitais, por exemplo, embora possam enunciar a perenidade, são marcadas por constantes metamorfoses, onde nada realmente perdura sem ser reinterpretado ou descartado. Nessa ótica, a dissonância entre a produção longeva de Warhol e o presente transitório de Villalonga é central para entender algumas das inúmeras angústias humanas do mundo contemporâneo. 

Ademais, o filósofo sul coreano Byung-Chul Han, professor da Universidade de Artes de Berlim, em seu bestseller A Sociedade do Cansaço, discute sobre como a perseguição incessante pela produtividade e pelo sucesso pode acarretar o nosso esgotamento físico e mental. Nessa sociedade desenfreada, o “fazer” constante, por vezes guiado pelo desejo de deixar legados, pode nos afastar da vivência plena do que hoje vivemos. Ao mesmo tempo, somos constantemente perseguidos pela nostalgia e pela reminiscência de um tempo idealizado, seja um passado que jamais poderemos reviver ou um futuro que se apresenta sempre fora de alcance. 

Nesse esteio, a proposta de Warhol de elaborar marcas que permaneçam indefinidamente pode ser vista como uma forma de resistência ao esquecimento e à dissolução que Villalonga tão bem captura em sua imagem do presente como ponto entre o imaginário e a nostalgia. No entanto, ao tentar fixar o arisco elemento temporal, seja por meio da arte, da memória ou da tecnologia, deparamo-nos com a realidade de que tudo está sujeito à transformação. Assim, a criação artística oriunda do esforço por deixar demarcações que sejam perenes pode ser uma tentativa de preencher essa lacuna ontológica, ainda que saibamos que, no fundo, o tempo inevitavelmente transformará e reinterpretará nossas criações. A quimera da permanência se choca com a realidade da mudança contínua e, por conseguinte, essa tensão pode gerar tanto inquietações quanto ímpetos inventivos.

O diálogo entre Andy Warhol e Lorenzo Villalonga revela um paradoxo central da condição humana: enquanto almejamos elaborar entalhes que subsistam eternamente, o presente que habitamos é um ponto fugaz entre a recordação de um passado idealizado e a miragem de um futuro que nunca se concretiza. No mais, a temporalidade líquida descrita por Bauman, a sociedade do cansaço analisada por Han, bem como o tempo como extensão de Bergson nos mostram que a tentativa de imortalidade, embora poderosa, é sempre moldada pelo fluxo incontrolável do tempo. Na hodiernidade, a busca por construir ranhuras vitalícias pode, então, ser compreendida como uma forma de resistência à admissão da nossa finitude. 

Nesse sentido, o desafio que permanece é refletir sobre como podemos viver plenamente – se é que podemos -, conscientes dessa fugacidade, sem cair na armadilha do imediatismo, da melancolia ou do delírio. Talvez, possa ser suficiente apenas abraçar essa distensão no momento presente, reconhecendo que o que criamos, embora não seja imortal, possa ter reverberações profundas e transformadoras no outros. Possivelmente, os nossos legados irão transcender a nossa finitude a considerar que “o que realmente conta na vida não é apenas o fato de termos vivido; é a diferença que fizemos nas vidas dos outros que determina importância da nossa própria vida”, como sabidamente nos aconselha Nelson Mandela (1918-2013), vencedor do Prêmio Nobel da Paz de 1993 e presidente da África do Sul de 1994 a 1999.