Dos meus tempos de menina lembro-me bem do clima dos dezembros, com dias muito chuvosos, em alguns anos torrenciais a ponto de suscitar nas almas infantis o terror do fim do mundo. As catequistas de antanho nos descreviam o dilúvio como águas infindas que iam engolindo com sua fúria paisagens, casas, animais e gentes. Daquela hecatombe só tinham escapado Noé e sua família.
Mas havia dezembros de Sol, com raios dourando as encompridadas tardes e infundindo algum brilho nas árvores artificiais enfeitadas com bolas vermelhas e flocos de algodão em lugar de neve. Era para lembrar que se fazia inverno onde Jesus havia nascido, um ponto entre Nazaré, terra de sua mãe Maria e de seu pai José, e Belém, onde acontecia o recenseamento ordenado pelo imperador romano Herodes.
Fizesse chuva ou sol, nesta época minha mãe era tomada por uma fúria de arrumação com faxinas quase desnecessárias, pois nossa casa era muito pequena, com poucos itens no que dizia respeito a móveis e acessórios. Curiosamente, acumulavam-se coisas nos doze meses.
Dona Dina começava o trabalho pelas gavetas da sua máquina de costura, o coração da casa, de onde saía o nosso sustento. Delas eram retiradas inúmeras coisas. Folhas de figurino que freguesas levavam para ilustrar o modelo do vestido escolhido. Caderneta de capa dura e título dourado, “Medidas”, e nas suas páginas pautadas os centímetros na frente dos vocábulos costas, busto, quadris, comprimento, ombro, manga, punho e outros termos do léxico que me iniciou na leitura. Botões de várias cores deixavam o caos dos cantinhos e seguiam organizados para caixinhas vazias de pó-de-arroz. Agulhas de todos os tamanhos espetavam entretelas e tomavam seu rumo, um estojo de veludo desgastado. Pedaços de passamanarias, sianinhas, soutaches, palavras hoje em desuso porque seu significado deixou há muito de existir, acomodavam-se por cor em embalagens de catupiry. Fitas métricas enroladas feito serpentinas retornavam a seus estojos. Mas três tesouras permaneciam juntas na mais alta das gavetas que eram ao todo seis, três de cada lado. Retroses dispostos como arco-íris e carreteis de linha em cores básicas repousavam no mesmo compartimento. Retalhos de tecidos guardavam-se à parte, numa caixa redonda de papelão que um dia havia acolhido um chapéu. Nos dias de bom humor minha mãe nos oferecia alguns pedaços daqueles panos para que fizéssemos vestidos de boneca.
Gavetas arrumadas, era o corpo da Singer a sofrer os efeitos da limpeza, com flanelinha específica para os lustros internos e externos. Da canelinha à correia da roda e pedais tudo tinha de ser meticulosamente limpo para se manter em funcionamento nos meses que viriam. A larga fita de gorgorão, que servia para espetar algum alfinete-de-cabeça dispensado momentaneamente de sua função, saía do pescoço da máquina e era substituída por outra nova e colorida. Isso significava que o trabalho ali estava concluído.
Depois da máquina era vez da cozinha. Poucas panelas; alguns pratos reunidos pelo signo da necessidade; talheres de uso ordinário- garfos, colheres, duas facas cegas. Fácil limpar com sabão em pedra e areia de rio, que não sei de onde vinha até que surgiu a esponja de aço. O difícil mesmo era lavar a parede do fogão a lenha. Essa parede era escura por conta de dois fatores: a fumaça, da qual não dava conta uma chaminé emperrada, e a fuligem, que entrava pelas muitas frestas do telhado. Nos altos cantos, proximidades com o telhado, pairava algo semelhante a negras e grossas teias de aranha: eram as medonhas picumãs. Gastava-se um dia inteiro para clarear a tal parede, mas no final dava gosto ver o resultado.
Na sequência vinham os quartos, dois, que quase não pediam limpezas espetaculares porque só reuniam camas simples e baús no lugar de armários. O que se tinha a fazer era revirar colchões e retirar as roupas para dobrá-las caso estivessem fora de ordem. Saindo de dentro para fora, as faxinas avançavam para o quintal que era ceifado das ramas exageradas dos chuchuzeiros e tinha vasculhadas as pedras amontoadas a um canto onde lesmas e lagartixas conviviam.
Por fim, chegava a hora de passar pelo escrutínio a mesa retangular onde se cortavam tecidos e se armavam as roupas antes de serem alinhavadas e depois costuradas. Essa mesa de madeira pesada também tinha gaveta que, imagino, originalmente deveria ter sido espaço para faqueiro, pois era bem larga. Possuía fechadura e continha mistérios, pois estávamos, minha irmã Sandra e eu, proibidas de abri-la, quanto mais mexer no que havia lá dentro. Na verdade, só víamos seu interior nos finais de ano, quando era esvaída de quase tudo que ali se acumulara. Um saco de papel, porque a peste do plástico ainda não havia contaminado a civilização moderna, era aberto e nele iam sendo jogadas muitas coisas destinadas ao lixo. Algumas eram cartas retiradas de envelopes amarelados pelo tempo, rasgadas em pedacinhos como se a intenção fosse colocar ponto final a sentimentos tristes. Quase nada ficava no interior, acho que apenas recibos de aluguel da casa que ocupávamos. Sem as tralhas, o gavetão expunha sua amplidão e seu vazio. Eu me perguntava se ele iria se encher de novo até o próximo dezembro.
Tudo arrumado segundo seu desejo, Dona Dina olhava satisfeita a máquina de costura, as brilhantes panelas de alumínio no paneleiro, a parede clara que parecia aumentar a área da cozinha, as roupas dobradas com capricho, o terreiro todo varrido. Só então iria armar o singelo presépio que durante o ano ficava guardado em lugar ignorado. Ao lado dele dispunha pequeno ramo verde espetado num vasinho saído de algum lugar que não me lembro mais. E, como quase todas as pessoas, fingia a neve com pedaços de algodão esgarçado. A manjedoura mantinha-se vazia, à espera do Menino que estava a caminho- assim ela explicava a ausência dele para nós.
Talvez porque tenho me detido com mais atenção na parte essencial da máquina que ficou comigo, dividida que foi com minha irmã que preferiu o bonito suporte de ferro, venho me lembrando com curiosidade desse ritual de nossa mãe. Ando convencida de que era uma forma que ela havia encontrado para exorcizar o velho, o antigo, o embolorado, o escuro, o opaco, o pesado e tudo aquilo que desagradava não apenas aos olhos mas principalmente ao coração. Penso que intuitivamente ansiava naqueles adventos por abrir espaço ao novo que precisava chegar nas asas da esperança.
A fé religiosa lhe foi de grande valia nesse propósito e lembrar seu gesto colocando o Menino Jesus na manjedoura depois da faina do fim do ano ainda me comove. Especialmente porque em minha memória continua ecoando sua voz delicada a pronunciar a frase que eu não entendia mas me soava tão misteriosa quanto bonita, “Gloria in excelsis dei”, resquício de um tempo em que a missa era celebrada em latim.
Sonia Machiavelli é professora, jornalista, escritora; membro da Academia Francana de Letras.