
Fazer as refeições todos os dias é algo natural para centenas de milhares de campineiros, mas um desafio para uma outra multidão que vive na extrema pobreza em Campinas.
Para Gisele de Lima, 41 anos, comer, por exemplo, é antes de mais nada, um desafio. Ela vive com 11 filhos em um barraco construído com madeirites, tábuas velhas e retalhos de lona. O teto é de telha brasilit, que fomenta o calor sob temperaturas elevadas. A mulher, que acabou de ter um filho, conta que o ato de comer está sempre no seu imaginário, como uma incógnita acerca do amanhã.
“São 11 pessoas que dependem de ter alimentos dentro de casa. Um dia a gente pede um arroz para o vizinho, conta com a ajuda de alguém, mas sempre passando aperto”, conta Gisele.
Entre os 11 filhos, há uma adolescente, que também já carrega uma vida nos braços: um bebê de poucos meses. Todos se apertam nos dois cômodos do barraco, anexo à Gleba, no Parque Oziel, de onde desafiam às dificuldades e esperam por tempos melhores.
Gisele é uma das 165 mil pessoas que vivem na extrema pobreza em Campinas, o que significa dizer que cerca de 14,4% da população - que de acordo com IBGE é de 1,1 milhão de pessoas – vive com até R$ 89,00.
Dados da Secretaria de Assistência Social, Pessoa com Deficiência e Direitos Humanos revelam que entre dezembro de 2019 e maio de 2023, quando houve a última atualização, esse número quase dobrou.
No primeiro ano, cerca de 93 mil pessoas viviam sob essa condição, de modo a notar um incremento de 72 mil pessoas entre 2020, 2021, 2022 e os cinco primeiros meses de 2023.
De acordo com a administração municipal, o governo Lula (PT) uniu extrema pobreza ao conjunto dos que estão inseridos na pobreza –pessoas que vivem com até R$ 178 por mês. Assim sendo, a cidade possui 198,3 mil se somadas as duas faixas de renda.
Neste contexto, a região que engloba o Parque Oziel e o Jardim Monte Cristo é protagonista e revela uma série de famílias que perecem às dificuldades.
Na Gleba, por exemplo, a reportagem da Sampi Campinas conversou com uma dezena de famílias que vivem em moradias precárias, em áreas de risco, que temem ficarem desabrigadas a cada chuva e que travam batalhas diárias pelo alimento.
A jovem Mariana Tavares, 30 anos, sucumbe à geladeira vazia. Ela e o marido também vivem em um barraco de madeira e dependem do trabalho do homem, que atua como entregador em uma adega. Os R$ 50 adquiridos pelo marido por dia de trabalho servem a todas as necessidades da casa.
“Às vezes não comemos mistura, às vezes não comemos feijão, comemos o que tem”, conta a jovem com a porta da geladeira aberta. “É sempre muito difícil viver nessa insegurança. Temos que torcer para que ele (o marido) trabalhe e volte com o dinheiro, passe no mercado, compre alguma coisa”, diz a Tavares, que está desempregada atualmente.
“Nosso sonho é sair daqui, evoluir, mas sempre se configura como algo distante, intocável. É uma situação de desespero”, finaliza.
Situação pior vive Maria Aparecida Tavares, de 52 anos, que chorou ao receber a reportagem em seu barraco, à beira de uma encosta.
Tavares sempre trabalhou, até começar a sofrer com dores na coluna e ter que abandonar o emprego como faxineira. Ela cuida de uma criança de 9 anos que adotou em uma casa cuja entrada exige abaixar para entrar, similar a entrada de uma caverna.
No interior do imóvel, fios expostos se espalham por todos os lados, conduzindo energia proveniente de “gato”, ou seja, ligação irregular.
O banheiro tem um desnível de mais de 30 centímetros do restante do chão da casa. De acordo com a moradora, o solo cedeu após um período constante de chuvas.
“Quando eu trabalhava, conseguia comprar as coisas, não deixava faltar nada para a menina. Hoje em dia, cada dia é um dia, não sei o que fazer. Não sou de pedir nada a ninguém, mas peço a Deus que devolva minha saúde, para que eu possa aguentar mais uns anos”, diz Tavares, com lágrimas nos olhos e sem saber o que almoçar, já por volta das 13h.
Aumento
De acordo com os dados da pasta de Assistência Social, o número de famílias na extrema pobreza cresceu no seguinte ritmo.
- 2019 – 93,3 mil
- 2020 – 104 mil
- 2021 – 118 mil
- 2022 – 154,7 mil
- 2023 (até maio) - 165 mil
Entre os anos, o maior aumento foi experimentado em 2022. No 1º trimestre do ano em questão eram 129,7 mil pessoas na com renda de até R$ 89 por mês, ante 154,7 mil no 4º trimestre daquele ano.
Para a secretária responsável pelas políticas de assistência social na metrópole, Vandecleya Moro, o problema é complexo e precisa ser resolvido em várias frentes.
"O enfrentamento da situação de vulnerabilidade social é preocupante e exige parcerias entre Estado, União e municípios. O trabalho vai além do acolhimento, visa também a emancipação das pessoas nessas condições. As causas do fenômeno são complexas e envolvem fatores como o aumento da inflação, o desemprego e a pandemia de Covid-19, entre outras causas”, diz.
“Em Campinas, a Secretaria Municipal de Assistência Social, Pessoa com Deficiência e Direitos Humanos tem se dedicado ao enfrentamento da situação de vulnerabilidade social por meio de serviços como CRAS, o DAS, o Programa Renda Campinas, o Cartão Nutrir, entre outros. Adicionalmente, mediante o Cadastro Único, as pessoas em situação de vulnerabilidade têm acesso a uma vasta gama de benefícios como a Tarifa Social de Água, o Bolsa Família, o BPC e diversos outros benefícios federais e estaduais”, complemente Vandecleya.
Na avaliação do economista José Augusto Gaspar Ruas, coordenador do curso de economia das Faculdades de Campinas (Facamp), o número pode ser avaliado sob duas óticas.
“Durante a pandemia, o governo Bolsonaro optou por fazer o auxílio emergencial ao invés de usar o CadÚnico (Cadastro Único) para promover assistência. Isso significa que o cadastro ficou meio parado porque você tinha a operação pelo aplicativo. Isso quer dizer que esse aumento pode refletir um aumento de pessoas recebendo algum auxílio do governo, o que é bom”, contextualiza.
“Por outro lado, é importante reforçar as consequências que um aumento da extrema pobreza pode trazer. Estamos falando de aumento da violência urbana, precarização das condições de trabalho, a saúde, que será pressionada porque haverá problemas alimentares, depressão, alcoolismo e uma série de outros problemas”, complementa.
Para o sociólogo Vitor Barlleta Machado, professor da PUC-Campinas, o aumento reflete um descontrole da política econômica a nível macro.
“É possível imaginar um reflexo de um cenário geral do que ocorreu no Brasil neste período. Nós sabemos que nessa etapa que vai de 2019 até agora tivemos um contexto econômico muito difícil. Tivemos o contexto da pandemia, evidentemente, mas principalmente uma gestão pandêmica desastrosa, que interferiu tanto a questão da saúde quanto da economia, o dólar atingindo níveis altos e certamente isso se reflete aqui na região", avalia.
Esperança
Na expectativa de obter dia após dia o necessário para sobreviver, as famílias buscam amparo a quem pode ajudar nessa missão.
O casal Marcio e Gabriela Cutri vivem em prol de ajudar famílias da comunidade do Parque Oziel, através de um espaço batizado de “Plantando Sementinhas”.
A entidade se esforça, junto a seus voluntários, para realizar um “trabalho de formiguinha”, atuando diariamente nas necessidades mais básicas de cada família.
“O que notamos é que tudo é muito custoso para essa família. As pessoas carecem dos itens mais básicos a que se possa imaginar. Então o nosso trabalho atua no sentido de doar um arroz a uma família, um botijão a outra, uma água a outra, e assim sucessivamente, resolver o problema dessas pessoas”, explica Gabriela.
O espaço oferece atividades e alimentação às crianças durante os fins de semana. Marcio explica que obtém a gratidão de pessoas que veem no “Plantando Sementinhas” uma chance de sorrir.
“Além de ajudar no dia a dia, estamos preocupados com a orientação dessas crianças para que elas possem romper esse ciclo de violências, de impotência, que os afligem e possam, enfim, trilhar um caminho diferente do que vivem hoje”.