Se na ficção científica das telonas e telinhas as máquinas inteligentes aparecem quase sempre como uma ameaça mortífera para a humanidade, no mundo real elas têm sido trabalhadas na área da saúde com uma missão diametralmente oposta: salvar vidas. É neste contexto que está uma pesquisa promissora da Faculdade de Odontologia de Bauru (FOB) da Universidade de São Paulo (USP). O estudo busca utilizar inteligência artificial (IA) para auxiliar no diagnóstico do câncer bucal.
"A ideia é criar um software para que o dentista ou o médico tire uma foto com o celular da lesão bucal e o programa diferencie se aquela lesão é potencialmente maligna ou se ela tem um aspecto de benignidade", projeta Mattheus Siscotto Tobias, autor da pesquisa "Redes neurais convolucionais para diagnóstico clínico de câncer bucal".
O estudo começou a ser desenvolvido no mestrado dele, com orientação do professor da FOB Paulo Sergio da Silva Santos. Agora, o trabalho, que tem parceria da Faculdade de Odontologia da USP (FOUSP, da Capital) e da Ciência da Computação da Unesp Bauru, segue no doutorado de Mattheus Tobias, de olho na importância do diagnóstico precoce do câncer de boca.
"O diagnóstico precoce é fundamental para diminuir a mortalidade, para a qualidade de vida do paciente e para diminuir custos do sistema de saúde", destaca Paulo Santos.
O professor, que trabalha com pacientes com câncer bucal no Centro de Pesquisa Clínica da FOB-USP e também no Hospital Estadual de Bauru, revela que os casos têm chegado com nível muito avançado para o tratamento, o que aumenta consideravelmente o índice de mortalidade. "Diante disso, é fundamental que a Atenção Básica consiga fazer esse diagnóstico de uma maneira mais precoce. Então, nossa ideia é fazer um software que possa ser usado na Atenção Básica para essa finalidade", complementa.
SUBSTITUIRÁ OS PROFISSIONAIS?
Sempre que se fala em IA, fica a pergunta: existe o risco de os profissionais serem substituídos por essa tecnologia? Segundo os pesquisadores da FOB-USP, a resposta neste caso é simples e direta: não. A IA seria uma importante aliada dos médicos e dentistas da Atenção Básica nesse processo de diagnóstico.
E esse é o caminho mais razoável que a inteligência artificial - e o uso dela - vem tomando no mundo da ciência. Para o professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP Glauco Arbix, um dos mais influentes pesquisadores da área, é preciso se pensar sempre em "humanos mais máquinas, e não em máquinas no lugar dos humanos".
ANÁLISES DE IMAGENS
E, para "deixar a marca" com a IA de um modo que possa salvar vidas, os pesquisadores da FOB-USP usaram um banco de dados com mais de 6 mil imagens de câncer bucal e outras de lesões não malignas, ensinando a rede neural a diferenciá-las. A partir disso, softwares analisaram todas essas fotografias tentando "acertar" o que era câncer e o que não era. E o resultado impressionou: uma acurácia de cerca de 80%.
Depois de feito esse "aprendizado da máquina" no mestrado, agora, a análise está sendo aprofundada e validada no doutorado. "Pegamos o banco de imagens com lesões malignas e não malignas e submetemos a 50 experts em câncer bucal de todo o Brasil para que eles analisassem o que era câncer e o que não era. Agora, vamos confrontar as respostas dos experts com as respostas da máquina", explica o professor da FOB Paulo Sergio da Silva Santos.
A previsão é de que a pesquisa se encerre no segundo semestre de 2026, mas os achados já são considerados muito promissores pelos pesquisadores. Inclusive, já há artigo publicado sobre o trabalho, com boa repercussão, e outros encaminhados para publicações em revistas internacionais.
"Também apresentamos esse nosso estudo em setembro na 29.ª Reunião da Academia Iberoamericana de Patologia e Medicina Bucal, na Argentina, e vencemos como melhor pesquisa na categoria pôster", conclui Mattheus Tobias.
Além de Mattheus e Paulo, integram ainda a pesquisa Celso Lemos Jr. (FOUSP), João Paulo Papa (Unesp), Marcos Cleison Santana (Unesp) e Rafael Gonçalves Pires (Unesp).