Vá em paz e Deus te acompanhe, "pato". A ave amarela de brinquedo, levada no bolso da batina, é apresentada ao perdedor, chamado de pato pelo padre Caio José de Melo Silva, 32, após cada vitória dele e de seu avô, Antônio Luiz de Melo, o Vô Tonho, 77, em partidas de truco.
No último dia 25 de outubro, o bicho foi colocado sobre a mesa quatro vezes, o número de vitórias da dupla do interior paulista para ser campeã de um torneio nacional do carteado em São Paulo.
"O pato é uma provocação ao adversário, para dizer que ele é fraco, que a gente depenou ele", brinca o padre, que costuma bater forte com as mãos na mesa e gritar com o oponente, como requer uma partida de truco de boteco -o religioso, entretanto, garante nunca ter disputado um jogo em bares, mas sempre em ambientes mais comportados, como os familiares ou mesmo nos seus tempos de seminário.
Padre Caio de Melo, de Areias (SP), foi campeão nacional de truco - Foto: Divulgação/Truco Masters
Os jogos do torneio Truco Masters, transmitidos ao vivo por canais especializados na internet, chegaram a ter 1 milhão de visualizações e mudaram a rotina do metódico pároco responsável pela igreja católica de Areias, município de pouco mais de 3.500 habitantes no noroeste do estado e a 250 km da capital paulista.
O título com o avô o transformou em celebridade. Nos últimos dias, entre tantas entrevistas, manuseou cartas de baralho em rede nacional no programa de Patrícia Poeta, da TV Globo. Só faltou fazer maço, forma de embaralhar para se ter vantagens, quando o adversário não percebe, ato que não foi permitido no torneio.
Os jogos do carteado entraram na vida do religioso antes de sua vocação ser levada para a Igreja. Na adolescência, morava com os pais em um sítio na zona rural de Lorena (a cerca de 200 km da capital), cidade onde nasceu, quando o avô, do interior de Minas Gerais, se mudou para lá.
"Durante uns dois ou três anos eu visitava meu avô todas as noites. Aprendi [o truco] com ele assim, e a brincadeira só acabava quando a avó mandava parar, porque estava na hora de dormir", afirma.
Vô Tonho conta que a única diversão do vilarejo do pessoal da roça onde morava na região de Itajubá eram os jogos de truco em bares aos domingos. Aprendeu observando o pessoal.
"Achava interessante", diz o idoso, bom de despistar os adversários pela fala mansa e olhar de quem não está entendendo nada, até baixar uma manilha (nome dado às cartas mais fortes) vencedora ou trocar a voz baixa pelo berro ao trucar.
Dessas brincadeiras de avô e neto nasceu a dupla dos churrascos em família e festas de fim de ano, sem nenhuma pretensão de ir além disso. Até o anúncio de o torneio ser feito no Gaules, streamer de jogos que o padre ouvia enquanto montava uma réplica de barcos, um de seus hobbies.
Primeiro pediu autorização ao bispo responsável pela sua diocese para participar de um evento que poderia ser chamado de jogatina -e teve permissão. Depois, pegou o carro e foi até Lorena contar a novidade, primeiro para a avó e depois ao parceiro.
O segundo passo foi gravar um vídeo com o avô para anexar na inscrição. E aí veio a coincidência que o religioso reluta em dizer que foi premonição. Durante a filmagem, ele puxou um 5 de espadas, e na hora afirmou que aquela carta daria vitória no torneio, a partir de uma trucada falsa do adversário, aceita pela avô. Não deu outra, o título veio assim.
A ideia era que fizessem a viagem de quase cinco horas apenas para passarem momentos de descontração. Ganhar o torneio e o prêmio de R$ 40 mil, que os campeões dividiram em partes iguais e ainda estudam como usar, era um sonho distante. Mas a conquista não seria por falta de fé.
A chegada de um pessoa de batina e um idoso surpreendeu adversários. "Ninguém esperava que fosse aparecer um padre com o avô dele. E quem diria que seriam campeões", brinca o pároco. "Mas conforme as duplas iam sendo eliminadas, as pessoas passavam por nós e falavam 'ô padre, não fala por aí, mas estou torcendo por vocês, viu'."
Também foi preciso perder a timidez diante das câmeras ?ainda mais porque a família estava reunida em casa lá no interior acompanhando o torneio ao vivo, além da provocações dos rivais. "Ou ganha do padre ou tem bênção no final", afirma o avô sobre frases ouvidas. "Mas nos receberam bem."
Os primeiros jogos foram mais difíceis, mas nem por isso o religioso disse ter pedido ajuda de Deus ou feito alguma promessa para ganhar. Porém, a empolgação crescia a cada rodada, até a glória.
Corredor de 3 km todos os dias, a volta para casa com troféu foi uma maratona. O torneio terminou na virada de sábado para domingo e às 6h ele estava no confessionário para atender aos fiéis, ainda sem saber que estavam diante de um campeão.
Foi no dia seguinte, após as três missas dominicais, que a notícia se espalhou por Areias. "Virou o assunto da cidade e começaram a me chamar para churrascos regados a truco, mas não aceitei", brinca. Também teve gente que torceu o nariz, mas foram poucos, afirma.
O padre, que não tinha rede social ativa, criou uma conta no Instagram. Com a Folha de S.Paulo ele conversou no último dia 3, em um escritório em Pinheiros (zona oeste paulistana), acompanhado de assessoria, depois de ter ido aos estudos da TV Globo e antes de participar de um evento sobre esportes em Guarulhos, na Grande São Paulo.
Padre Caio, porém, quer voltar logo à rotina pacata do interior, que além das atividades religiosas, inclui peladas de futebol às quintas-feiras com os amigos -ele é goleiro-, estudos durante a tarde e a montagem de barcos à noite. Ele também pratica paintball -jogos de ação e combate com armas e munição de tina, que ele diz só valer no campo (de batalha) e faz calistenia, uma forma de treinar usando a própria força do corpo. "O que ainda não fiz é correr de kart, mas um dia chego lá."
Ele rejeita a ideia de transformar rede social numa extensão de sua igreja para replicar a palavra de Deus. "Não pretendo traçar um caminho de padre influencer. Sou padre de uma paróquia de 3.000 habitantes, a minha missão é santificar aquele povo e me sinto muito feliz assim."
Também não quer virar profissional do truco, até porque não se considera um jogador excepcional, apesar do troféu que tem carregado de um lado para o outro com o avô.
"Truco é um grande conglomerado de vários fatores. Você tem que estar bem de carta, precisa blefar na hora certa, torcer para o adversário estar com cartas menores que a suas, não cair no blefe dele e acertar esses vários momentos de forma conectada", diz.
"Então, não sei se sou bom no truco, mas que a gente mais ganha do que perde, isso eu garanto", provoca o religioso, que repete a palavra blefe na explicação sobre o carteado que pratica.
Segundo o dicionário Houaiss, blefar significa enganar, iludir ou ludibriar. "Mas padre pode mentir?", questionou a reportagem na entrevista.
O pároco usou uma metáfora para dizer que não mente ou blefa sem o baralho na mão.
"A gente não pode tomar as regras de um mundo fechado, o jogo, e aplicar na vida real. Não se pode condenar um ator ou uma atriz por algo que ele encenou, como uma guerra, uma morte", afirma. "O jogo, como toda brincadeira, é um mundo fechado. As regras que são utilizadas ali. ficam ali."