A palavra crise é sempre vinculada a um momento agudo onde a neurose, latente ou não, irá decidir o futuro de um sujeito, e declara uma urgência no sentido de que não é possível continuar como foi até então.
Estar em crise não é necessariamente algo ruim, mas um combustível que serve para aprofundarmos o próprio questionamento intrínseco do contato consigo próprio.
Amamos, odiamos, passamos por dificuldades vezes sem compreender o que a qualidade dos estímulos quer nos comunicar.
Na história da psicanálise, a crise sempre foi vista como um momento de urgência que propicia um trabalho psíquico, assim como a criação de novas formas de lidar com o sofrimento, quebrando padrões de repetição se promovemos um rearranjo subjetivo face ao desamparo e ao conflito que se estabeleceu na dificuldade.
Uma vida narrada por perdas e rupturas torna-se interessante à medida que aprofundamos as próprias vivências, aprendendo com tudo o que nos acontece quando damos sentido à própria existência.
Diante da crise, quando não cindimos com a realidade mas continuamos apesar das dificuldades, repensando as transformações que os momentos difíceis podem se frutificar em aprendizado e experiência emocional, seguimos sem sermos os mesmos, mas transformados pelo contato com nós mesmos quando as mudanças acontecem a favor da saúde mental, criando novos sentidos a partir das vivências que se impõem, pensando as dificuldades sem transbordar pequenos sentidos de existência que atuam como um desorganizador de memórias.
Do contrário, atacamos para diminuir a angústia, invadimos o território alheio sem nos darmos conta da própria agressividade e do porquê agimos assim.
É da crise que indagamos se nossas escolhas foram as melhores, e torna-se uma experiência fecunda porque nos coloca em contato com situações que exigem profunda reflexão, sobretudo quando podemos pensar qual é a nossa participação naquilo que estamos enfrentando, ou seja, o que é nosso e o que é do outro, e qual a nossa contribuição quando permitimos estar submergidos em certos arranjos que desestruturam nossa saúde mental e que contribuem para as formações patológicas.
O objetivo da crise será sempre desenvolver no sujeito o funcionamento psíquico, expandindo seu mundo interno na tentativa de encontrar um novo significado podendo o levar a novos arranjos, onde as associações, se superficiais, serão apenas substitutos de deslocamentos e associações mais profundas que foram suprimidas da consciência, porque, na maioria das vezes, não aguentamos a nós mesmos e o que somos capaz de fazer com o outro quando, num momento difícil, atacamos, matamos o outro em nós, hostilizamos com nossa destrutividade, e formamos conluios que reforçam os equívocos.
Na escuta psicanalítica pressupõe-se um modo de conceber o homem, a mente e a linguagem que não é dado intuitivamente a ninguém, mas nos é possibilitado por hipóteses sobre o funcionamento psíquico e sobre a natureza do processo psicoterapêutico, onde, as noções de transferência e resistência estão na base do ofício da escuta que recobre o fenômeno da angústia em relação ao eu, onde o excesso de excitações insuportáveis para o aparelho psíquico e suas constantes rupturas, provocam bruscos remanejamentos que colocam em risco a própria rotina diante do impensável que vivemos quando estamos num momento de crise.
Mediante uma dificuldade, somos convocados a mobilizar recursos psíquicos que nos dará a oportunidade de poder nos exercitarmos no reconhecimento do próprio potencial. E neste aspecto, quando aproveitamos positivamente estes momentos para aprender com a experiência, a crise nunca representará um fator negativo uma vez que propicia o desenrolar de um processo criativo e autonomia que só é possível acontecer quando a partir de novas perspectivas, acontece um reposicionamento subjetivo.
Mesmo havendo a ocorrência de uma sensação de desordem que é desencadeada pela crise, passar por estes momentos, conseguindo superar as dificuldades da melhor maneira e com aprendizado, nos faz sentirmos vivos e participantes do nosso processo de existência enquanto a vida vai se apresentando individualmente para cada um de nós.
No final das contas, não é só o que nos acontece que conta, mas como vivemos a vida que se apresenta nas dificuldades e felicidades cotidianas, ambas como forças que se misturam o tempo todo e até o fim de nossas vidas.
Música "Chega de Saudade", com João Gilberto.