Caio Richieri, 49 anos, nasceu em Jaú (a 55 quilômetros de Bauru), mas foi em Bauru que construiu sua trajetória pessoal e profissional. Casado com Andreza e pai de três filhos - Tayna, 29 anos, Anna Júlia, 25, e Caio Júnior, 17 -, cultivou um sonho que o acompanhava desde a infância: resgatar o legado dos antepassados italianos.
A primeira pista surgiu ainda na adolescência, quando recebeu uma carta com uma árvore genealógica incompleta. O documento despertou uma curiosidade que o acompanhou, mesmo guardada por décadas, por conta de outras responsabilidades da vida.
Entre elas, o comando do Jack Music Pub, casa noturna que marcou a cena cultural de Bauru por 25 anos. Sob sua gestão, o bar recebeu nomes consagrados do rock brasileiro e internacional, além de abrir espaço para bandas autorais e artistas locais. O Jack tornou-se ponto de encontro de gerações, referência no interior paulista e palco de iniciativas sociais.
Apesar da dedicação ao bar, Caio nunca abandonou a busca pelas origens. Em 2018, após reunir documentos e comprovar a descendência, embarcou para a Itália, mesmo sem falar o idioma, para iniciar o processo de reconhecimento da cidadania. A decisão implicou mudanças radicais. Em 2025, encerrou definitivamente o ciclo do Jack em Bauru para dedicar-se ao sonho de reconstruir a história da família na Europa.
No país de seus ancestrais, inaugurou o Jack Café — homenagem ao bar que ajudou a consolidar sua identidade no Brasil.
Hoje, instalado definitivamente na Itália, Caio ainda busca preencher as lacunas deixadas pelo tempo. A jornada, diz ele, é mais do que uma busca pessoal: representa a possibilidade de dar continuidade a um legado e transformá-lo em memória viva para as próximas gerações dos Richieri — que, na verdade, se escreve Ricchieri, na grafia original italiana — mais uma das descobertas do empresário.
JC - Quando você ouviu falar pela primeira vez do bisavô italiano?
Caio - Eu tinha 9 anos. Estávamos num almoço de domingo e meu avô falava algumas palavras diferentes. Descobri que eram italianas. A curiosidade me marcou. Aos 14, uma carta enviada por um parente chegou à casa da minha tia, com uma árvore genealógica desenhada à mão. Naquele momento, senti que era uma missão minha continuar aquela história.
JC - Como foi a infância e adolescência tentando entender esse enigma?
Caio - Era difícil. Não havia Internet, os cartórios não davam atenção a um adolescente e os documentos eram caros. Cheguei a encontrar algo sobre um tio do meu bisavô, que teve uma destilaria em Jaú, mas tudo era muito fragmentado.
JC - Em algum momento você chegou a acreditar que não seria possível?
Caio - Sim. Eu pesquisava no Arquivo Nacional (plataforma do governo que disponibiliza registros de imigrações antigas), mas não tinha resultado. Inclusive escrevia o sobrenome errado, com um "c" só. Nada aparecia. Passei décadas montando uma árvore genealógica, mas faltava a informação essencial: o local de nascimento do meu bisavô na Itália. Sem isso, não havia como prosseguir.
JC - Houve um ponto de virada?
Caio - Em 2017, fui com minha esposa a São Paulo assistir ao show do U2. Como chegamos antes, resolvemos visitar o Museu da Imigração. No totem de pesquisa, não encontrei nada. Fiquei frustrado. Mas minha mulher percebeu uma placa de atendimento, entrou e falou com uma historiadora, Beatriz (único nome que ele recorda). Quando sentei com a historiadora, mostrei a certidão de casamento que dizia apenas "italiano". Ela não encontrava nada, até que perguntou o nome do pai do meu bisavô, que era "Ângelo". Foi a chave. Assim que ela digitou, apareceram todos os dados. Descobri que meu bisavô chegou ao Brasil com 9 anos, junto com os pais e outros parentes. Foi nesse momento que percebi por que havia tanta dificuldade: ele era criança na época e o sobrenome tinha mudado.
JC - A partir daí a busca acelerou?
Caio - Sim. Reuni certidões como de nascimento e casamento do meu bisavô, depois do meu avô, do meu pai e as minhas. Todos traduzidos, apostilados, com um gasto de cerca de R$ 10 mil. Era burocracia pura, mas necessária. Quando os documentos foram aceitos, comprei a passagem. Em janeiro de 2018, embarquei para Veneza sem nem falar italiano.
JC - Como foi o primeiro contato direto com o legado dos Ricchieri?
Caio - O grande marco foi o Palazzo Ricchieri, em Pordenone. Um edifício que começou como torre do século XIII e depois virou palácio renascentista. Os afrescos narram lendas de Tristão e Isolda, cenas de caça e a epopeia carolíngia. Durante uma visita, arqueólogos mostraram sepulturas altomedievais (sepulturas escavadas em rocha) encontradas sob o palácio, datadas entre os séculos X e XI. Era como se a própria fundação da casa repousasse sobre nossos ancestrais.
JC - Qual a ligação da família com a nobreza europeia?
Caio - Nas pesquisas, descobri que em 1383 os Ricchieri receberam o título de nobreza da Casa da Áustria. Poucos anos depois, em 1389, a República de Veneza também concedeu reconhecimento político e econômico. O ponto alto veio em 1468, com o título de Conde do Sacro Império Romano-Germânico. Ou seja, nossa família esteve registrada oficialmente entre a nobreza europeia.
JC - Além do palácio, que outros lugares revelaram essa presença histórica?
Caio - No Duomo di San Marco encontrei a Capela Ricchieri, com afrescos da escola de Gentile da Fabriano. No Cemitério de Pordenone vi o mausoléu da família, com registros desde 1690. Em Fiume Veneto descobri a Villa Ricchieri, também chamada Villa Bice, construída no século XIX. E há até uma rua chamada Via Conti Ricchieri.
JC - Qual foi o impacto pessoal dessa jornada?
Caio - Desde pequeno eu sabia que tínhamos origens italianas, mas faltava viver essa certeza, não apenas estudá-la de forma teórica. Quando as informações se confirmaram, foi como se eu tivesse despertado para uma nova realidade. Resgatar essa linhagem é, para mim, uma homenagem a todos os meus antepassados, um reconhecimento ao esforço de cada um.