17 de dezembro de 2025
ENTREVISTA DA SEMANA

Julia Ho Shen Tsu Lee; A arte como idioma

Por Tisa Moraes | da Redação
| Tempo de leitura: 5 min
Tisa Moraes
Julia Ho Shen Tsu Lee

Foi com tintas, espátulas, pincéis e longos períodos de silêncio e inspiração diante das telas que a artista plástica Julia Ho (Ho Shen Tsu Lee), 86 anos, encontrou seu idioma mais íntimo. Nascida em 1938 em Xangai, em meio à Revolução Chinesa e à 2.ª Guerra Mundial, mudou-se com a família aos 9 anos para ilha de Taiwan, a República Nacionalista da China que se opôs à República Popular da China.

Lá, conheceu o marido, Jaime (in memoriam) e com ele fincou raízes em Cabrália Paulista, em 1968. Anos depois, já com os três filhos - Nancy, George e Peter -, o casal mudou-se para Bauru, onde Julia Ho, ao mesmo tempo em que enfrentava o desafio de se adaptar a um novo país, se redescobriu por meio da arte.

Pintora autodidata, ela teve a oportunidade de aperfeiçoar sua técnica com referências como Angelina W. Messemberg, Sônia Gabriele e Francisco Rojas. Versátil, experimentou métodos com espátula, aplicações em areia, barbante e papelão, pintou porcelanas e esculpiu em argila, pedra-sabão e bronze. Produziu intensamente por mais de quatro décadas, expôs sua obra em diversos espaços culturais e despertou a atenção da crítica, que premiou um de seus trabalhos em Olímpia, em 2001.

Já aposentada dos pincéis e orgulhosa de sua obra, agora Julia nutre a esperança de conseguir expor uma retrospectiva de seu trabalho na Pinacoteca Municipal, em 2026, como forma de celebrar uma vida marcada por diferenças e de encontros de culturas, cores e memórias. Leia abaixo a entrevista concedida por ela, com a colaboração de Peter, ao Jornal da Cidade.

JC - Como era sua vida na China?

Julia - Nasci em Xangai, a maior cidade da China. Meu pai trabalhava na alfândega, éramos seis irmãos - eu sou a segunda filha - e morávamos em uma casa muito boa, em Taipei, Taiwan. Quando terminei o colegial, também fui trabalhar na alfândega. Eu tinha 21 anos e, aos 30 anos, conheci o Jaime, que também é chinês. Nós nos apaixonamos, ele quis casar e me trouxe para o Brasil, mais especificamente para Cabrália Paulista, onde ele tinha comprado uma fazenda.

JC - Houve um motivo específico para a escolha pelo Brasil?

Julia - Jaime já estava no Brasil a trabalho, na época. Era comum que muitos de nós buscássemos trabalho e melhores condições em outros países. Por coincidências da vida, ele conheceu outros patrícios aqui. Jaime falava muito bem do Brasil. Quando nos casamos, acabei vindo morar com ele e não voltei mais. E meus três filhos nasceram aqui. Morávamos em Cabrália, mas, como não havia hospital maternidade lá, eles nasceram em Duartina.

JC - Vocês foram morar na fazenda?

Julia - Na cidade. Meu marido foi empreendedor, fez de tudo, ele era engenheiro têxtil formado em Taiwan. Aqui no Brasil, trabalhou em empresa têxtil em São Paulo, foi caixeiro viajante com produtos da China, teve uma pequena oficina de bolsas finas e uma olaria em Bauru. No final dos anos 1970, nos mudamos para Bauru e ele montou um supermercado na rua Campos Salles, na Vila Falcão, no ponto onde viria a ser aberta a primeira unidade do Confiança em Bauru.

JC - Foi nesse contexto que a senhora começou a pintar?

Julia - Sim. Não conhecia muita gente aqui, não sabia falar português, então, para ocupar a cabeça, comecei a pintar, autodidata. Olhava uma paisagem bonita em um livro, uma foto no jornal e me inspirava. Morávamos no Bela Vista e as primeiras aulas, em 1988, por incentivo da minha filha, foram com a professora Angelina Messemberg, em um ateliê no Centro. Depois, conheci outros pintores, que eram referência na época, e comecei a fazer cursos para aprimorar a técnica, entre eles com a Sônia Gabriele, o Francisco Rojas, e fui aprendendo outras técnicas. Fiz diversos cursos livres também. Mas, na maior parte do tempo, pintava em casa. Quando morávamos na Antônio Alves, nos Altos da Cidade, de 1987 a 2010, eu tinha meu ateliê, um espaço para minhas pinturas, e passava o dia lá, na companhia das tintas e das telas. Foi a fase em que mais produzi.

JC - Fez muitas exposições? Quais técnicas mais utiliza?

Julia - Fiz no Centro Cultural "Carlos Fernandes Paiva", na Galeria de Arte do Senac, no Espaço da Caixa Econômica Federal, na Pinacoteca Municipal. Participei de várias exposições coletivas e, em 2001, uma das minhas telas, "Temperando o peixe", foi medalha de ouro na exposição Oliart, da Associação Olimpiense dos Artistas Plásticos. Eu uso técnicas variadas, com espátula, às vezes aplicações de materiais como areia, barbante, papelão. Também pinto porcelanas e ainda faço esculturas, como animais e figuras humanas, usando argila, pedra-sabão, bronze.

JC - Chegou a comercializar suas peças? Continua pintando até hoje?

Julia - No passado, como não conhecia o que vocês chamam hoje de marchand, deixei algumas telas em consignado aqui de Bauru, mas não recebi o valor devido. Eu pintava porque gostava, me fazia bem, presentei muitos com as minhas obras. Tenho cerca de 150 telas em casa, mas parei de pintar há uns 15 anos, principalmente por conta de pioras da condição de saúde do meu marido, que sofria com doença de Parkinson.

JC - Não pensa em voltar a pintar?

Julia - Não como antes, apenas esporadicamente. Pintei por mais de 40 anos. Hoje, na minha idade, é difícil sair para escolher tinta, que a gente não encontra com tanta facilidade em Bauru. Mas, agora (os filhos e a cuidadora, Lydiane) estão reunindo documentos e fotografando meus quadros para fazer a inscrição no edital de Exposição Individual de Artes Visuais da Secretaria Municipal de Cultura, que está em andamento e vai selecionar três artistas para integrar a programação da Pinacoteca de 2026. Seria uma oportunidade de fazer uma retrospectiva do meu trabalho artístico e já estou na expectativa pelo resultado, que sairá em dezembro.

O QUE DIZ A ARTISTA

'Não conhecia muita gente, não falava português, então, para ocupar a cabeça, comecei a pintar'

'Tinha meu ateliê, um espaço para minhas pinturas, e passava o dia lá, na companhia das tintas e das telas'

'(Uma nova exposição) seria a oportunidade de fazer uma retrospectiva do meu trabalho artístico'