05 de dezembro de 2025
COLUNISTA

O cristão, as ideologias e os limites da submissão

Por Hugo Evandro Silveira |
| Tempo de leitura: 4 min
Pastor Titular - Igreja Batista do Estoril

O cristão pode até simpatizar com certas ideologias, mas deve reconhecê-las sempre sob a lente da cosmovisão bíblica. Essa cosmovisão parte da convicção de que a Escritura é divinamente inspirada, inerrante e digna de total confiança. Ela revela de modo coerente o enredo da Criação, Queda, Redenção e Consumação: Deus criou todas as coisas; o homem caiu em pecado; Cristo é o único Redentor; e, por fim, todas as coisas serão consumadas na eternidade, sob Seu governo soberano.

Por essa razão, o cristão precisa avaliar movimentos e pensamentos críticos diante da Bíblia. Por exemplo, o anarquismo prega a rejeição de toda autoridade e hierarquia, defendendo que somente uma sociedade sem Estado poderia ser livre e justa. Dentro dessa tradição, surgem vertentes como o "anarquismo cristão" que propõe que somente Deus deve ser reconhecido como autoridade, negando a legitimidade de governos e estruturas humanas.

Todavia, a própria Escritura nos ensina que a autoridade não nasceu do pecado, mas da vontade de Deus para estabelecer ordem num mundo marcado pelo mal. A opressão, a exploração e toda injustiça decorrem da corrupção do coração humano, e não da existência de governo em si. Por isso, a esperança cristã nunca repousa num ideal utópico ou numa sociedade sem leis, mas na promessa de Cristo, que já inaugurou Seu Reino, cuja justiça se manifesta aqui de maneira parcial e será plenamente consumada na eternidade.

Um exemplo histórico ilustra de maneira eloquente essa verdade: no tempo dos Juízes, quando "não havia rei em Israel e cada um fazia o que lhe parecia certo" (Jz 17.6), a ausência de governo não resultou em liberdade genuína, mas mergulhou a nação em crescente idolatria, violência e degradação moral. O vácuo de autoridade não promoveu justiça; ao contrário, escancarou as portas para homicídios, abusos, estupros, esquartejamentos e toda sorte de injustiça descrita nas páginas sombrias daquele período. A anarquia, longe de gerar equidade, apenas deu vazão à corrupção que reside no coração humano, revelando que a liberdade sem limites se converte rapidamente em tirania dos mais fortes sobre os mais vulneráveis.

Estruturas de autoridade são indispensáveis para conter o avanço da maldade. Essa verdade se confirma nas palavras de Paulo em Romanos 13, ao ensinar: "Obedeçam às autoridades...". O apóstolo demonstra que a autoridade legítima é instrumento de Deus, instituída para servir ao bem comum, premiando quem pratica o bem e refreando quem pratica o mal. Assim, a narrativa bíblica não apenas legitima a existência de autoridades, mas revela que sua função primordial é proteger a dignidade humana e restringir os efeitos do mal.

Jacques Ellul, teólogo francês envolvido na resistência ao nazismo, entende que Paulo em Romanos 13 quis equilibrar a tendência antirromana de cristãos do primeiro século, lembrando-os de que toda autoridade deriva, em última instância, de Deus. Ainda que os primeiros cristãos rejeitassem o culto a César, confessando somente Jesus como Senhor, reconheciam que a autoridade humana - mesmo imperfeita - cumpria um papel ordenado por Deus. É importante notar que Paulo não legitima o abuso de poder. Quando governos deixam de punir os ímpios e passam a perseguir os justos, eles traem seu propósito e se tornam ilegítimos diante de Deus. A Bíblia abre margem para uma resistência responsável: não uma subversão anárquica, mas a chamada desobediência civil, como ocorreu com os apóstolos que disseram: "Importa obedecer a Deus antes que aos homens" (At 5.29). Assim, a fé cristã não é sinônimo de passividade diante da injustiça, mas também não é anarquismo. Ao longo da história, cristãos oscilaram entre submissão e resistência: de um lado, sustentaram que a ordem civil é melhor que o caos; de outro, desafiaram reis e sistemas que contradiziam a Palavra de Deus.

Por fim, as Escrituras reafirmam: "O Altíssimo tem domínio sobre o reino dos homens" (Dn 4.17) e "Do Senhor é a terra e a sua plenitude" (Sl 24.1). Governos, leis e hierarquia não são males a serem abolidos, mas dádivas divinas para conter o caos e proteger a dignidade humana. O cristão não adora o Estado, mas o honra, orando para que cumpra seu papel de premiar o bem e refrear o mal. Eis a tensão da fé bíblica: aguardar o Reino perfeito de Cristo, sem ignorar que, até lá, Deus preserva a ordem por meio das autoridades humanas para que a sociedade não seja tragada pelo desgoverno gerado pela anarquia.

IGREJA BATISTA DO ESTORIL

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63 anos atuando Soli Deo Gloria