Todo filme de ficção tem um fundo de verdade... às vezes não tão agradável. Nas entrelinhas, mostram cenas que não queremos enxergar. São tão evidentes que cegam, exatamente como quando somos expostos a muita luz.
Dez anos se passaram desde o lançamento de “Ascensão de Júpiter” (2015), um filme de ação, aventura, romance e ficção científica – naves e viagens espaciais, seres alienígenas, universos paralelos, mas seu enredo diz muito sobre os dias de hoje. Parte da história foi baseada na Odisseia de Homero, escrita e dirigida por Lily e Lana Wachowski, a jornada da heroína chamada Jupiter Jones é protagonizada pela atriz Mila Kunis. No início da trama é uma mulher simples, comum, frágil, ingênua que desconhece sua origem “real” e entra numa guerra familiar interestelar pela posse da Terra.
Nas aventuras de Júpiter, a superação dos perigos, das ameaças que surgem na luta pela sobrevivência mostram que a tecnologia, o controle da longevidade genética não impediram o crescimento da civilização do consumo, muito pelo contrário, acentuou.
Balem, o então “dono da Terra”, o vilão que quer se manter no poder a qualquer custo, numa das cenas marcantes, fala para Júpiter que “a vida é um ato de consumo. Viver é consumir. Os seres humanos do seu planeta (Terra) são um mero recurso aguardando para serem convertidos em capital. Este empreendimento todo é uma pequena parte de uma vasta e bela máquina (seria a IA?) definida pela evolução com um único propósito, gerar lucro”. Continua ele: “Minha mãe me fez entender que toda sociedade humana é uma pirâmide e que certas vidas sempre importarão mais que outras. É melhor aceitar isso, Jupiter, do que fingir que não é verdade.” O ato de consumir não é apenas econômico, e sim um ato simbólico, cultural, psicológico, comportamental e político.
Consumimos não apenas produtos, mas ideias, vínculos, experiências, afetos e até causas sociais. Tudo pode ser cooptado pela lógica do mercado. Ela forma subjetividades, classifica pessoas, estrutura o poder e define quem merece ou não viver com dignidade. Na pirâmide da importância, em “que certas vidas sempre importarão mais que outras”, os amigos do rei (aqueles próximos ao poder) são privilegiados, e a meritocracia se transforma numa fábula.
Os valores humanos de Júpiter são colocados à prova durante toda a trama, diante de um sistema desumanizado e tecnológico. Ela, ao recusar o poder baseado na exploração, reafirma algo que a sociedade do consumo tenta ofuscar – a dignidade não é moeda, a empatia não é algoritmo, e o amor não pode ser reduzido a capital simbólico. Mesmo confrontada por uma estrutura que transforma vidas em ativos e relações em contratos, ela escolhe proteger em vez de lucrar, pertencer em vez de dominar, sentir em vez de calcular.
A Ascensão de Júpiter nos mostra uma alegoria do presente – uma sociedade orientada por dados, eficiência, escassez fabricada e vínculos cada vez mais frágeis. A “máquina bela” de que fala Balem pode ser lida como um símbolo do capitalismo algorítmico, que já coloniza nosso imaginário e nossos desejos, que transforma tudo, até mesmo, sentimentos em métrica, audiência ou tendência. Contudo, não há algoritmo que substitua a ética. Não há inteligência artificial capaz de programar o afeto. E não há civilização que prospere se esquecer que o outro é, antes de tudo, humano.
Rosângela Portela é jornalista, mentora e facilitadora (rosangela.portela@consultoriadiniz.com.br)