13 de março de 2025
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OPINIÃO

Indignidade humana

Por Roberto Magalhães | O autor é professor de redação e autor de obras didáticas e ficcionais
| Tempo de leitura: 3 min

Do alto do avião, a vida é pequena. Os homens e os automóveis rastejam como se soubessem para onde vão. As casinhas se juntam amassadas, quadriculando os espaços. O verde escuro das árvores preenche os vazios. Tudo é minúsculo, olhado de cima. É o que vejo voando de primeira classe. Estou voltando de mais uma das minhas palestras na Califórnia. Meus livros estão entre os mais vendidos. Dou entrevistas e falo com a autoridade de quem soube subir os degraus da fama. Ontem, superei todas as expectativas. O auditório lotado reconheceu em pé a excelência da minha apresentação. Discorri sobre "Dignidade humana", aliás, o assunto do meu último livro. Filosofando e voando, ganho dinheiro e aplausos por tudo o que escrevo e falo. Na volta de cada viagem, desfilam-me na memória as imagens do meu sucesso: a plateia aplaudindo, a sessão de autógrafos, fotos, jantares concorridos, autoridades e moças lindas ao meu redor.

Estou de volta ao meu escritório. Adélia, minha secretária, me espera com a agenda na mão. Dr. Marcos o senhor tem exame de colonoscopia depois de amanhã. No dia anterior, começo o rito da preparação. Às 8 da manhã, bebo o meu primeiro copo de manitol, um líquido incolor e grosso, nauseante. Uma tortura de 200 ml a cada 15 minutos. Uma dieta líquida obriga-me a requisitar a exclusividade do banheiro em apressadas evacuações em série. Sensação horrível de me ver desmilinguir em doloridos jatos de limpeza total.

No hospital, vestiram-me uma camisola ridícula, que exigia nada por baixo. Fechada só na frente, deixava-me a bunda de fora. De vinte em vinte minutos, a enfermeira me trazia mais manitol. Era humilhante acompanhar a avaliação que ela fazia da minha água suja. Enquanto turva, mais manitol, mais banheiro. Finalmente, ela me aprovou, eu tinha conseguido o resultado cristalino, a transparência desejada.

Fui de maca para o procedimento. Um aparelho endoscópico flexível com uma luz e uma câmera na ponta seria introduzido no meu ânus. Visualizariam e filmariam todo o meu intestino grosso, chegando, nesse longo passeio visceral, ao meu intestino delgado. Acordei na sala de repouso, o médico dava tapinhas no meu rosto, amigo você está abarrotado de gases, fique à vontade, não segure nada, solte tudo para se aliviar. Não demorou, uma revolução gasosa começou a exigir saída. Minha mulher, ao meu lado, enfiava a cara no celular. Para o meu desespero, chegou uma amiga dela. Depois dos beijinhos, as fofoqueiras destamparam o mundo. Indiferentes, os gases, ameaçavam explodir a minha barriga, a maca, o departamento de colonoscopia, o hospital e o mundo! Desesperado, tentei contato visual, mas minha mulher me ignorou. Vencido pela revolução intestinal, soltei o mais poderoso de todos os peidos. Longo e barulhento, um peido como nunca se viu na literatura médica mundial. Assustadas com o tamanho do berro intestinal, minha mulher e a amiga olharam-me com tal reprovação que me senti o pior dos vermes flatulentos. Correndo, fugiram da sala. Esvaziei-me.

Tirei a camisola ridícula. Vesti-me. Minha mulher, dirigindo o nosso carro, censurava-me pela vergonha que eu a fizera passar. Um escritor famoso, um intelectual renomado peidando daquele jeito, um absurdo! Claro, a amiga faria a alegria de todas as outras amigas, estava desmoralizada. No outro dia, Adélia me esperava com a agenda na mão. Amanhã, o doutor dará uma entrevista à revista Atenas, sobre Dignidade Humana. Tremi. Um gosto nauseante de manitol invadiu-me a boca.