O chamamento público para selecionar as entidades que vão coordenar a realocação das famílias desalojadas do Jardim Europa, em Bauru, teve três participantes, um dos quais inabilitado pela prefeitura. Restaram dois: a Aelesab e o Instituto Elas, entidades ligadas à coordenadora de políticas públicas para as mulheres, cargo comissionado da Secretaria de Assistência Social, Daniele Camargo.
Da primeira ela foi diretora administrativa; da segunda, a fundadora. Ambas venceram o edital que prevê pagar R$ 531.936 por mês a cada uma para realizar o serviço. Serão R$ 6.383.232,00 em 12 meses, prorrogáveis por igual período.
O procedimento foi aberto em 8 de outubro, dias após a prefeita Suéllen Rosim (PSD) retirar da Câmara um pedido de autorização para contratar as duas entidades ao mesmo serviço sem chamamento.
Seriam R$ 266 mil/mês a cada uma - R$ 2,1 milhões anuais - para realocar 76 famílias. Considerado inconstitucional pela Comissão de Justiça, acabou retirado pela prefeita em 3 de outubro. Cinco dias depois, o governo lançou edital para realocar 300 famílias e majorou o valor para R$ 6,3 milhões anuais.
Venceram o certame as duas entidades que o governo municipal pretendia contratar desde o início.
Ao JC, a prefeitura disse que "não identificou qualquer conflito de interesses ou irregularidade no processo de seleção das entidades" e que "o procedimento foi conduzido de forma transparente e em conformidade com os princípios da administração pública".
Daniele trabalhou na Aelesab por anos. A organização social da sociedade civil (OSC) gere o Bom Prato, mas tem outros contratos vigentes. A mãe de Daniele trabalhou na entidade por um período - Daniele disse ao JC que ela já saiu e garante não ter mais nenhum vínculo com a Aelesab.
Foi nomeada em 17 de novembro de 2022 para a coordenadoria de políticas às mulheres, mas ainda sustenta o título de fundadora do Elas.
O estatuto de 2022 da entidade dava direitos adicionais a essa categoria - como a manutenção quase permanente no quadro.
A demissão de fundadores só é permitida se aprovada em assembleia geral e por justa causa.
O estatuto foi formalizado em 1 de junho de 2022 e assinado pela própria Daniele, além de um advogado.
Não consta do documento a assinatura da então presidente, Nivea. Ao JC, Daniele afirmou que homologou o estatuto como idealizadora da instituição.
Nesta segunda, após questionamentos do JC, o estatuto disponível no site foi alterado para um atualizado em 2024 e, agora sim, com a assinatura de Nivea. Até a sexta-feira (20), quem acessava a seção "estatuto" no site do Elas encontrava o antigo.
O JC encontrou um contrato entre a prefeitura e o instituto de dezembro de 2022 - data posterior à sua nomeação - em que a coordenadora assina como presidente do Elas.
Ao JC, Daniele disse que ainda na época pediu para retificar o contrato, já que a presidente que consta do quadro do Elas, cujo mandato vai de 2021 a 2026, é Nivea Sonia Marchesini.
O Elas surgiu na rua Mário Gonzaga Junqueira (Parque Viaduto). O mesmo endereço consta de documentos atuais da entidade - em outros está o da rua Treze de Maio, onde de fato a matriz funciona.
O JC esteve no imóvel do Parque Viaduto. Estava vazio. Uma vizinha informou à reportagem que o instituto mudara de endereço e que pouco antes sua moradora, Daniele, também havia deixado a casa.
Ao JC, Daniele confirmou que morava na antiga sede, mas que deixou o local assim que abriu o instituto. Ela afirmou também que a única sede administrativa do Elas fica na Treze de Maio.
Em nota, o governo afirmou que "o local onde a antiga sede da entidade estava localizada não influencia na análise do processo de seleção, que foi conduzido de forma técnica e transparente, sem qualquer irregularidade ou conflito de interesses identificado".
O portão da atual sede estava aberto. A reportagem entrou, mas não foi atendida. Decidiu falar com uma moradora do Europa que tinha queixas a fazer. Uma funcionária identificada como Rose interrompeu a entrevista, perguntou o que a reportagem fazia ali, cortou respostas e disse "sim" à pergunta se desejava que a reportagem se retirasse do local.
A presidente do Elas, Nivea Marchesini, esteve no JC nesta segunda-feira (23) e disse que informações sobre valores de chamamentos estão sob responsabilidade da administração.
Também nesta segunda, Daniele afirmou que se desligou da diretoria e que presta serviços ao instituto somente como voluntária. O JC encontrou recibos de pagamentos do Elas à sua fundadora. Confrontada com os documentos, Daniele afirmou que o serviço parte de um convênio com a Defensoria Pública.
O edital que o Elas venceu proíbe que a entidade tenha "em seu quadro de dirigentes, membro de Poder ou dirigente de órgão ou entidade da administração da mesma esfera governamental na qual será celebrado o Termo, estendendo-se a vedação aos seus cônjuges, companheiros e parentes em linha reta, colateral ou por afinidade, até segundo grau".
A exigência é dispensada àquelas que, "por sua própria natureza, sejam constituídas pelas autoridades referidas, vedado que a mesma pessoa figure simultaneamente como dirigente e administrador público".
Duas irmãs de Daniele fazem parte da atual diretoria do Instituto Elas, admitiu a coordenadora ao JC nesta segunda. Uma é conselheira e a outra, secretária. A recente atualização do estatuto passou a permitir remuneração de presidentes ou membros da diretoria.
O projeto retirado da Câmara previa bancar os custos em nome do Poder Executivo, sem especificar a pasta de onde os recursos sairiam. Já o chamamento público está em nome da Secretaria de Planejamento. O edital se embasa tanto no Estatuto da Cidade, matéria da Seplan, como em princípios da Assistência Social - pasta vinculada ao cargo de Daniele. A prefeitura não comentou a relação parental entre Daniele e as duas irmãs na diretoria do Elas.