28 de novembro de 2024
OPINIÃO

Sapatos

Por Marcondes Serotini Filho |
| Tempo de leitura: 3 min
O autor é Ortodontista e membro da Academia Bauruense de Letras

Essa peça do vestuário sempre ocupou lugar de destaque na minha vida. Desde quando minha mãe guardou um sapatinho que eu ostento numa foto ainda bebê. Se aquele sapatinho não estivesse ainda no meu criado-mudo, eu não me reconheceria como o bebê fofinho e sorridente do quadro. Porque bebês pequenos mudam muito e mesmo que me afirmassem com todas as letras que sou eu ali a sorrir, apenas ao vê-los intactos, marrons e brilhantes na minha gaveta é que tenho certeza de ser eu mesmo ali. Quase até que me lembro do momento em que o instantâneo foi tirado, no ateliê do único fotógrafo da cidade nos anos 60.

Anos se passaram e o sapato, assim como os tênis para a prática desportiva, se tornaram parte de mim, principalmente porque era e é sempre eu que compro meus sapatos e tênis. Apesar de usar, nunca gosto de pisantes que me compram ou me dão de presente. É assim.

Na infância, todos da minha adolescência e quejandos passaram por uma fase de transição histórica: do Bamba para o Kichute. O Kichute era um arremedo de chuteira, mas com travas de borracha e virou o sonho de consumo da molecada. O Bamba da Alpargatas, era o que existia desde as décadas anteriores e o que a gente mais usava até chegar o nobre Kichute. Nos sentíamos verdadeiros jogadores profissionais calçando nossas supostas chuteiras.

Jamais esqueço da reprimenda que o pai deu na mãe quando de um Desfile Cívico, onde as roupas impecáveis eram obrigatórias, lá fui eu naquele domingo de manhã usando um tênis surrado no tal desfile da escola. Pra quê? Após a "dura", minha mãe correu à loja de sapatos e me comprou um tênis da marca Íris, todo almofadado que eu só via na capa dos gibis que eu devorava diariamente. Mas o coitado era muito "delicado" e não aguentou um mês de asfalto, quadras, tropicões e raladas na calçada ao jogar bola de gude. Tadinha da mãe: outra bronca.

Meu pai quis economizar na minha primeira chuteira e me comprou uma da marca Viola, talvez por não ver muito futuro no futebol do moleque lento e preguiçoso em campo, como ele mesmo me dizia ao criticar minhas performances. Mas a tal chuteira era o cão de ruim, que me fez bolhas até "debaixo da língua" e se tornou inesquecível para mim. Anos depois, um jogador do Corinthians apelidado de Viola - famoso - contou o porquê do apelido e sua história batia com a minha.

O meu rei para jogar futebol de salão e campo era o Rainha F7. Tive dezenas. Eu era e sou apaixonado por aquele tênis de couro, liso para o salão e com cravos de silicone para a grama. Mas, quando em uma viagem a São Paulo, comprei um sapato da cor vinho, bico fino e fui com ele na primeira festinha dançante na garagem da casa de uma menina, o mundo entrou em convulsão. Digo o mundo meu e de meus amigos. Era uma novidade e ninguém se conformava, que os sapatos eram todos bico-largo ou "plataforma" naqueles tempos psicodélicos: "pra matar barata no canto"? Piadas dos meninos e elogios das meninas. Ponto pro Degas aqui, aos 15 anos, começando a dançar discotheque e a gostar mais ainda de sapatos.