No início da década de 1980, o urbanista italiano Bernardo Secchi, consultor do Laboratório Agudos (2004), que objetivou desenvolver o Plano Diretor para a cidade, propôs uma reflexão particular sobre o projeto urbanístico, identificado como um dispositivo narrativo de previsão do futuro, da estrutura da cidade e das relações que nela se estabelecem (Secchi, 1984). Apoiando-se nesse recurso, pode-se delinear quatro narrativas, que ou não surgiram ou foram apenas levemente pinçadas durante o debate dos candidatos a prefeitos, mas que podem servir para restaurar o sentido do projeto da cidade contemporânea.
É fato que o planejamento da cidade contemporânea representa um campo complexo que integra vários aspectos da governança territorial. Explicar e descrever eficazmente esse dispositivo requer considerar múltiplas dimensões, entre as quais se destacam sustentabilidade ambiental, inclusão social, inovação tecnológica, desenvolvimento, mobilidade sustentável, governança participativa e resiliência urbana. Cada dimensão contribui para a criação de uma visão integrada da cidade contemporânea, na qual um objetivo fundamental é a melhoria da qualidade de vida de todos os seus habitantes.
O planejamento urbano (e territorial) é, portanto, um processo dinâmico e complexo, que exige uma visão integrada e multidisciplinar, porque deve enfrentar inúmeros desafios: gerir a urbanização, enfrentar alterações climáticas, promover equidade social e colaboração entre as partes interessadas, tendo em vista as necessidades das diferentes comunidades numa perspectiva de desenvolvimento sustentável. São as principais prioridades que abrem caminho para cidades mais resilientes, inclusivas e habitáveis.
Diante do exposto, o dispositivo de organizar e definir políticas, ações e intervenções na cidade contemporânea não pode ser um instrumento enraizado na tradição do século XX, e articulado apenas em uma disciplina voltada para a regulação da nova cidade, ampliando a existente. É necessário perguntar-se: quais os possíveis métodos operacionais para um plano de regeneração e construção da cidade contemporânea?
Para tentar responder a essa questão, pode-se recorrer ao recurso retórico da narrativa, através da subsequente “decomposição e recomposição”. Pode-se imaginar que a planta da cidade contemporânea apresenta diversas 'camadas sobrepostas' de cores diferentes e, portanto, surge uma imagem completa policromada. Embora a cidade seja reconhecível pelo resultado final desta sobreposição de 'cores', também é possível experimentar a decomposição das diferentes 'camadas', a serem entendidas como áreas espaciais e de ação do plano e do projeto urbanos.
Diante da crise climática, a primeira camada pode ser constituída pela “cidade que não se constrói”.
Interromper o processo centrífugo de crescimento contínuo, conter e combater o consumo de terra são objetivos indispensáveis ??e amplamente partilhados que requerem identificar esse limite/margem em direção a um território, caracterizado, sobretudo, pelos componentes dos sistemas agrícolas e ecológico-ambientais. Significa fazer uma escolha consciente de sustentabilidade: após décadas de crescimento urbano expansivo, a condição ambiental tornou-se um determinante inevitável e os desenvolvimentos futuros, bem como qualquer novo crescimento excepcional, terão de lidar com as necessidades do equilíbrio ambiental. Não se trata mais de dar forma a partir do zero, de 'colonizar' o espaço agrícola ou natural, criando materiais urbanos segundo formas estabelecidas a partir do nada.
O projeto urbanístico da 'cidade a não construir' passa, portanto, pela identificação de uma margem e, mesmo em escalas diferentes, nela articularas áreas de parques, rios, morros, terrenos agrícolas, a ordem natural do terreno, valores culturais ?e a paisagem, sem adotar uma atitude de antagonismo entre cidade e campo ou de prevalência de um sobre o outro. Pelo contrário, trata-se de anular (ou minimizar) a expansão física, eliminando a condição de ‘espera’ (muitas vezes especulativa) para a ‘cidade não construída’. Isso é feito através de elementos físicos estruturais que, de tempos em tempos, e de acordo com as especificidades de cada cidade, podem assumir, por exemplo, o aspecto de parques fluviais, morros ou agrícolas, ou novos parques a serem recuperados para transformar áreas abandonadas.
A segunda camada (ou âmbito espacial de atuação) pode ser constituída pela “cidade a ser protegida e preservada”.
É aplicada onde houver um sistema de povoamento consolidado ou predominantemente edificado, no qual sejam reconhecidas partes urbanas e/ou sítios e artefatos com valor histórico-artístico e cultural, ou simplesmente porque pertencem à memória coletiva, ao patrimônio ou aos ambientes da história civil e valorizada dos lugares. Essa camada exige articular a noção de proteção, conservação, recuperação, requalificação e reorganização de todo o território municipal (tanto nas presenças antrópicas como nas naturais), incluindo, além dos espaços construídos, também as formações naturais ou seminaturais.
Em conclusão, juntamente com as partes nas quais a intervenção permitida deve manter os testemunhos em condições de serem apreciados por muito tempo, estendem-se as partes da cidade consolidada, nas quais o testemunho de histórias passadas ganha vida – onde compatível –, em diálogo proativo com a contemporaneidade.
Essas situações e casos são incrivelmente mutáveis ??a depender dos contextos: no Centro Oeste Paulista, em particular, o conjunto de tais situações move-se ao longo de uma linha temporal que vai das áreas quilombolas à cidade industrial do século XX, alargando o leque para a experiência da arquitetura moderna e de casos tão heterogêneos em formas, ao longo dos séculos, capazes de nos fazer compreender o quanto é necessário aprofundar ainda mais a noção de “proteção ativa”.
Uma terceira área espacial pode ser identificada como a “cidade a ser melhorada”, ou melhor, “a ser regenerada”.
É certamente a parte predominante do organismo urbano de hoje. Foi formada principalmente no século XX, expandiu-se com o grande e acelerado crescimento econômico e representa aquela área da cidade onde se acumulam as maiores divergências e tensões. Aqui há espaço para intervir e melhorar as áreas de construção privada onde as intervenções ainda são possíveis, visando introduzir, nos tecidos existentes, elementos capazes de melhorar não só a forma, mas o desempenho socioambiental global da cidade. Em outras palavras, “deve ser planejada e praticada uma regeneração urbana que, mesmo que mais ‘pontual’ (se comparada com as transformações urbanas das grandes áreas industriais abandonadas em torno de 2000), que esteja ligada aos objetivos, à qualidade do desenvolvimento e 'escopo' dos projetos que constituem identidade e um contexto de referência inteligível para os resultados.
São possíveis intervenções e melhorias significativas no espaço não construído, nos quarteirões, nos jardins voltados para o espaço público, nas partes que mais contribuem para definir o espaço aberto da cidade: condição presente tanto nas grandes cidades como nas pequenas e médias. Muito trabalho precisa ser feito nos bairros habitacionais, construídos quando as leis não permitiam a criação concomitante de uma estrutura de serviços adequada ou de uma combinação adequada de usos. Nessas áreas da cidade é preciso integrar as funções urbanas para consolidar os direitos de cidadania, reduzir as desigualdades e aumentar a coesão e pertencimento daquele grupo habitacional ao corpo ativo da cidade.
Mas é necessário fazer um esforço ainda maior para melhorar a qualidade do espaço público. Não se deve subestimar que, nesse aspecto, as administrações públicas, ao elaborarem o plano setorial, regulam-se e assumem orientações e compromissos com a comunidade, num campo em que podem exercer significativa autonomia (e autoridade) na tomada de decisões. E os primeiros agentes-receptores dessas iniciativas são simultaneamente os próprios gabinetes técnicos municipais, mas também as organizações do terceiro setor que, cada vez mais, auxiliam e subsidiam o público na prestação de serviços. Mesmo nessas questões, é necessário renovar o pensamento e, sobretudo, regular a ação através do plano setorial, de forma integrada com outros dispositivos de gestão do serviço público.
A recuperação da qualidade dos assentamentos urbanos e a melhoria da habitabilidade são em grande parte confiadas ao (re)planejamento e à reurbanização, mas sobretudo à redefinição do espaço urbano existente e novo, que pode ser conseguido graças às transformações urbanas. Por meio de áreas recuperadas, através de transformações, deve ser possível aumentar significativamente o patrimônio disponível dos espaços públicos. A ligação entre intervenções existentes e novas, entre cidades a melhorar, regeneradas e cidades a transformar, é fundamental para medir o significado das modificações e fazê-las dialogar com o contexto. A ausência dessa relação relegaria as operações individuais a um papel episódico, reconfirmando o papel do plano como quadro de referência fundamental (democraticamente partilhado) para a coerência de políticas, ações e intervenções.
Uma quarta camada, por fim, é relativa à “cidade a ser transformada”. É a estrutura mais variável e específica de cada cidade, e sua extensão, localização e capacidade de integração com a cidade construída derivam do legado histórico de cada cidade. Na cidade industrial, na conjuntura histórica da segunda metade do século XX, as grandes áreas industriais já inativas, os grandes serviços urbanos do início do século, bem como, em muitos casos, os relacionados ao sistema ferroviário de apoio, tornaram-se disponíveis para reutilização.
Grandes espaços fora da cidade então existente, portanto numa posição subsequente subcentral, ofereciam grandes oportunidades de modificação, otimizando a sua recuperação e reutilização à escala urbana e territorial, explorando os efeitos do sistema. Torna-se então de primordial importância que a regra da transformação, da substituição radical do que existe, seja acompanhada pelo princípio da devolução de uma parte substancial da área ao uso dos cidadãos e usuários da cidade em geral, oferecendo uma nova cidade, com características completamente diferentes da anterior: certamente modificam-se os usos pretendidos e as atividades urbanas estabelecidas e, consequentemente, modifica-se o papel da área na cidade.
Se, através da coordenação do plano, as novas partes forem complementadas com as existentes, e se a parte da área cedida à cidade for concebida para se integrar na estrutura urbana existente, daí podem resultar importantes ações complexas de regeneração urbana. E isso abre um capítulo especial, necessariamente inovador, na definição do aparato regulatório do plano.
Concluindo, a leitura por camadas cromáticas tem o sentido instrumental de favorecer a leitura sobreposta dos quatro níveis onde a síntese da seleção de cores mostra a riqueza e a complexidade do planejamento e do projeto urbanos, cujos conteúdos são muito mais amplos do que aqueles da tradição do século XX. O planejamento, nesse sentido, desmembra e reagrega partes da cidade, propõe transformações radicais e regenerações complexas, bem como a conservação e valorização de ambientes, lugares e repositórios de memórias, edifícios e artefatos. Não só consolida partes da cidade ao propor uma melhoria qualitativa da vida, mas até muda a geografia urbana quando consegue agregar múltiplas transformações, em tal escala que modifica a estrutura urbana. Mais do que isso, tem a capacidade de propor a necessária reforma do espaço e dos serviços públicos, garantindo alcançar os níveis mínimos essenciais.
O autor é professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp), doutor pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo e pelo Departamento de História da Arquitetura e Urbanismo do Instituto Universitário de Arquitetura de Veneza (2003) e professor-pesquisador visitante da Universitè Panthéon Sorbonne Paris I (2011-2013). Coordenador do Curso de especialização lato sensu em Planejamento Urbano e Políticas Públicas: Urbanismo, Paisagem, Território – PlanUPP.