16 de julho de 2024
OPINIÃO

Em tempos de Inteligência Artificial


| Tempo de leitura: 3 min
Zarcillo Barbosa

Ouço um jovem amigo dizer que ele não consegue imaginar de que maneira alguém, como eu, era capaz de escrever um artigo em uma máquina de escrever - "Quanto mais um livro!". Meses atrás visitei com a minha filha a casa que foi de Hemingway em Key West, na Flórida. Lá está a máquina de datilografia Underwood, portátil, com que ele escreveu obras primas como "O velho e o mar".

Fico pensando em Balzac, que escreveu centenas de livros a bico de pena. Somente a "Comédia Humana" (1845) engloba 91 romances, novelas e histórias curtas com 2.500 personagens. Nem sei como o Lucius de Mello dá conta de tudo.

Mas, se o processador de texto moderno se tornou uma ferramenta quase universal para os escritores atuais, seu impacto foi menos revolucionário do que se pode imaginar.

O computador permite que criemos sentenças sem os rabiscos e os esforços para apagar trechos que eram necessários na época do papel. A despeito de ocasionais falhas, os discos rígidos que usamos hoje são muito mais eficientes para armazenar e propiciar acesso a documentos do que os arquivos do passado. Agora, começa a surgir a Inteligência Artificial, e ninguém sabe ainda qual será a contribuição para a literatura e à produção acadêmica. Periga tanta artificialidade danar tudo de uma vez.

Usamos o computador para processar palavras, mas as ideias que animam as palavras se originam em outra parte, fora da tela. No cérebro das pessoas. O processador de texto mudou a maneira pela qual escrevemos, mas ainda não mudou nossa maneira de pensar.

Há sessenta anos que se escreve sobre funções da máquina de informação moderna, acionada por hipertexto, como "ferramentas de pensar". O americano Steve Jonhson, autor de recente obra sobre o tema, concluiu, melancólico, que a forma mais sofisticada de inteligência artificial que empregamos em nossa ferramenta de escrita, ainda é o "verificador ortográfico e gramatical". Em matéria de informações pessoais ainda nada bate o Google. O próprio Steve Johnson diz ter se valido do programa para escrever sobre a "a história evolutiva do sorriso" e sobre "a expressividade dos nossos parentes próximos, os chimpanzés". Claro que ideias falsas e becos sem saída também resultam do uso dessas ferramentas, mas o número de descobertas bem sucedidas é bem superior aos equívocos. Outro dia, pesquisando sobre conselhos úteis ou inúteis de autores famosos sobre como escrever, dei com esta joia do compositor Osvaldo Montenegro: "Meu amor, me ensina a escrever/A folha em branco me assusta".

Teoricamente é possível aprender qualquer coisa, desde pilotar avião a fazer fogo com gravetos. Na prática, não há software que seja uma completa solução. Com a escrita ficcional talvez seja pior. Margaret Atwood (O conto de Aia) sugere que se faça um bom alongamento para as costas. Nabokov (Lolita) dizia que o grande escritor é um sedutor, um encantador de leitores. Dessas coisas a Inteligência Artificial não é capaz de dar conta. Houve um autor que aconselhava o escritor primeiro hipnotizar-se para buscar inspiração no mais profundo da alma e, depois, despinotizar-se para reler o material friamente. E ter coragem para cortar. Esta seria a parte mais dolorosa.

Norman Mailer, conhecido pelo seu estilo violento e anti feminista (esfaqueou a mulher), deu seu conselho a um jovem escritor como o sargento que grita para o recruta: "se você não é capaz de fazer seu personagem atravessar uma sala, você está morto".

No apartamento onde morou Victor Hugo, na Place des Voges, em Paris, existe uma escrivaninha de pés altíssimos onde o autor apoiava os papeis para escrever "Os Miseráveis". Trabalhava em pé e seminu. Mandava o criado esconder suas roupas para não poder largar o trabalho e ir se distrair na praça.

Soluções que jamais serão encontradas com a Inteligência Artificial.

O autor é jornalista.