16 de julho de 2024
OPINIÃO

A rotina suja os olhos

Por Roberto Magalhães |
| Tempo de leitura: 3 min
O autor é professor de redação e autor de obras didáticas e ficcionais

Bom mesmo é olhar as coisas pela primeira vez. A novidade encanta; a virgindade seduz; o desconhecido arrebata. Assim, o primeiro encontro, o beijo primeiro, a primeira vez, momentos que o tempo jamais apagará. Depois, vem a repetição, o mais do mesmo... Então, o brilho e o encanto deixam de ser o que foram. Foi o que disse Otto Lara Resende na sua crônica Vista Cansada: "O diabo é que, de tanto ver, a gente banaliza o olhar. Vê não vendo". Disse mais: "O hábito suja os olhos e lhes baixa a voltagem." Bem isso, a roupa amada na vitrine, repetida no corpo, não é mais a mesma. O pior é que os nossos olhos se acostumam não só com sapatos, mas com gente também. Com amigos, até mesmo com familiares. Muitos maridos já não veem - como viam - a mulher e vice-versa. Quando não nos defendemos dessa corrosiva habituação, abrimos a porta para a perigosa indiferença.

Imaginemos um apartamento, cujas janelas não oferecem outra vista senão as janelas do prédio frontal. Sem visão que lhe agrade, o morador acostuma-se a não olhar para fora, a não mais abrir as cortinas, a esquecer a vida lá fora, a viver sem o sol. Esse exemplo está na excelente crônica "Eu sei, mas não devia", de Marina Colassanti. A gente não devia, mas se acostuma, por isso aquele que foi morar ao lado dos trilhos já não ouve mais o barulho irritante do trem. Tem culpado nisso? Tem sim. É o nosso cérebro, explica Tali Sharot, professora de neurociência cognitiva da University College London. E existe uma razão evolutiva para essa "habituação". É que a vida precisa seguir, as pessoas não podem ficar reféns de eternas sensações. Na perda de um emprego ou, pior, de um ente querido é a habituação que permite a vida seguir em frente. Não à toa, dizemos que o tempo é o melhor remédio.

Sabendo que os olhos tudo banalizam, manter a capacidade de se encantar renovadamente é crucial. A pele não pode desaprender a arrepiar-se. A arte sempre foi o caminho para extasiar-se diante do nunca visto. Educar a sensibilidade dos olhos para que o visto possa ser continuadamente revisto. Aliás, tudo pode e deve ganhar um novo olhar. Na crônica "A complicada arte de ver", Rubem Alves dá voz de espanto a uma paciente de psicanálise diante de uma cebola: "Mas cortada a cebola, eu olhei para ela e tive um susto.

Percebi que nunca havia visto uma cebola. Aqueles anéis perfeitamente ajustados, a luz se refletindo neles, tive a impressão de estar vendo uma rosácea de um vitral de catedral gótica. De repente, a cebola, de objeto a ser comido, se transformou em obra de arte para ser vista."

Educar os olhos, aguçar a sensibilidade é o antídoto contra a corrosiva habituação. Olhos inquietos e curiosos buscam continuadamente um novo modo de ver. É o que fazem os poetas, as crianças, os artistas, os visionários... Quem vê uma pomba e nela vê a paz, não viu nada.

Está chovendo no molhado. Caiu nas garras da mesmice, banalizou o olhar.