16 de julho de 2024
OPINIÃO

Meu doce ChatGPT para momentos kafkianos

Por Renato Ghilardi |
| Tempo de leitura: 2 min
O autor é prof. livre-docente - Unesp - Bauru

Dance conforme a música. Esse é o preceito básico para sobrevivência de sua saúde mental dentro de qualquer instituição pública de trabalho. Isso se deve pois, ao contrário do que ocorre em um ambiente competitivo empresarial, o processo paquidérmico, pesado, moroso e falsamente travestido de eficiência, inteligência e transparência chamada burocracia prevalece.

E a burocracia é sorrateira! Daquela visão estereotipada que tínhamos dela cheia de papéis e carimbos do século passado não existe mais nada. Pessoas mais ingênuas até acreditam que nos livramos dela. Mas ela está lá; escondida; pronta para nos fazer perder tempo e sanidade dentro de suas artimanhas burlescas.

Seu máximo dentro da universidade, por exemplo, é fazer com que todos funcionários parem suas atividades para planejar algo que não é possível de ser planejado pois não existe previsão de receita. Em suma, é a perfeição da perda de tempo e, consequentemente, de dinheiro.

Todo esse panorama me remete imediatamente ao livro "O Castelo" de Franz Kafka. Rapidamente, àqueles que não o leram, nele somos apresentados a um agrimensor, chamado apenas de K., que vai até uma aldeia trabalhar e ao tentar conversar com alguma autoridade no Castelo desta vila, nunca consegue nem ao menos saber quem é essa autoridade tamanha a rede labiríntica de funcionários, regras e burocracias ininteligíveis que lá existem.

Essa clara alusão a desumanização que ocorre a personagem do início do século passado ainda ocorre hoje. Ainda é tangível o absurdo e a alienação no mundo moderno. E esse encontro com forças incompreensíveis e incontroláveis gera desesperança e incerteza destruindo a nossa individualidade.

Um exemplo de caso, apenas para realçar o absurdo: essa semana tive que parar o atendimento que estava dando a um aluno da pós-graduação pois recebi um e-mail do "Castelo", urgente, para que eu relatasse uma justificativa de ter comprado 30 pen-drives para alunos de graduação usarem em seu trabalho de campo em 2019. Em 2019. Novamente: em 2019. Eu teria que parar meu trabalho, em 2024, para gastar meu tempo para sanar uma burocracia parva.

Digo mais: o e-mail do "Castelo" estava sem assinatura, o que é muito comum nos dias de hoje, tornando o processo de desumanização mais claro e dando uma desnecessária falsa sensação de autoritarismo àquela mensagem. A partir desse dia, criei meu mais novo mote de vida: se trecos toscos kafkianos na minha frente pular, não vou ter vergonha do GPT usar. E assim fiz ganhando uma manhã de tempo de serviço e de dinheiro público!

E hoje sou feliz pois fiz a boa luta contra o sistema sem me estressar. Assim, se o mundo te apresenta um bolero de tempo 4/4 pra dançar, não dance um 3/4 de valsa.

Mas assim como o agrimensor K. de Kafka, não devemos aceitar com passividade e sim lutar contra esses sistemas opressores e desumanizadoras mesmo que não seja possível ver um final feliz.