28 de setembro de 2024
OPINIÃO

Fome e Gula

Por Alfredo Enéias Gonçalves d’Abril |
| Tempo de leitura: 4 min
Professor universitário, aposentado

Há tempos, escrevi ao JC uma série de episódios verídicos, surgidos em pescarias regularmente empreendidas com os companheiros de sempre; Luis Pegoraro, João Costa Gomes, Pedro Gonçalves Cardoso e outros mais que ocupavam as vagas na caminhonete quando havia desistência de algum dos companheiros aqui mencionados. O destino não variava: Rio Paraguai, abaixo de Corumbá, uma colônia de pescadores conhecida por Porto Esperança.

As histórias publicadas descreviam fatos reais, existentes mas por serem longas não comportavam o espaço no jornal reservado aos leitores, o que me levou a fracioná-las em algumas partes e, assim, virou um fato sequencial, episódico, com as últimas histórias ligadas à primeira, publicadas no Caderno de Turismo, encartado na edição dominical do JC, caderno suprimido no momento necessário a um enxugamento da empresa devido a pandemia, alcançando toda atividade da livre iniciativa.

Inobstante, poderia continuar escrevendo na página do JC, Opinião, dedicada aos articulistas em geral nas edições de sábado/segunda-feira, no entanto entendi que uma história contada em partes, não se encaixaria adequadamente naquela coluna, daí porque deixei de escrever assuntos sobre pescarias, mesmo tendo iniciado no computador pescarias a partir da cidade de Cáceres-MT, também no Rio Paraguai.

Os fatos hilariantes ocorridos neste relato não ocorreram durante a pescaria, como os anteriores, mas durante o jantar no rancho Tarumã para o saboreio de dourados e pacus, peixes valentes e predominantes daquele piscoso rio, fisgados na manhã e a tarde daquele dia, os quais, foram desaparecendo misteriosamente na maior parte da bacia pantaneira, o que desanimou os pescadores da pesca esportiva de encarar viagem de metade do dia e regressar sem nenhum resultado, pois a longa viagem nada rendia e os raros pescados capturados eram devolvidos ao rio, caso contrário, estavam sujeitos a apreensão pelos agentes ambientais, causando uma enorme dor de cabeça ao pescador. A escassez de peixe no pantanal foi o motivo determinante da venda da cota-parte do rancho Tarumã pela maioria dos sócios originários.

Mas, retomando o assunto focado no título desta história, antes que a ideia se desdobre em outros acontecimentos, depois de uma incursão nas águas do Rio Paraguai o que rendeu alguns belos peixes para o jantar, o companheiro João ajudou na sua limpeza e os temperou, casualmente encontrou dois amigos defronte ao rancho, que mostraram interesse em conhecer o interior da casa. O imóvel vagarosamente foi olhado pelos visitantes, ocasião em que eles foram apresentados a mim e demais companheiros. O tempero dos peixes chegou até o olfato dos dois, e um deles, isento da cerimônia que norteia os costumes entre estranhos, foi logo retirando a tampa do tupperware, onde os peixes marinavam, ficando maravilhado do que viu e cheirou. Foi, então, que João os convidou para participarem da peixada no jantar. A hora da refeição não foi marcada, mas parodiando o raciocínio da ex-presidente da República, Dilma Rousseff cabia dizer: não costumamos marcar o horário do jantar, mas vocês podem chegar antes da hora. João foi mostrar sua habilidade na cozinha.

Passou os peixes na farinha de trigo misturada com fubá, colhendo uma receita que deixou os peixes mais saborosos, servindo vários pedaços a todos nós que conversávamos na varanda do rancho, bebendo cerveja, bem perto da cozinha, localização que permitia enxergar o João caprichando na divisão da tarefa de cozinheiro e copeiro, pois servia os companheiros a todo momento com o produto de seu trabalho na cozinha.

Os dois visitantes não escondiam o excesso de peso pela protuberância da barriga, e o mais pançudo mostrava insaciedade, mastigando o naco de peixe, bebendo cerveja e nos elogiando, tudo ao mesmo tempo, sentindo-se à vontade a ponto de evitar que lhe servissem, eis que ele próprio passou a buscar cerveja da geladeira do rancho, usar o sanitário sem pedir a ninguém, como faz o sócio do rancho.

As horas estavam passando e nada dos visitantes se despedirem, embora soubessem que em pescaria de grupo, como era nosso caso, os pescadores dormem cedo, em torno das 21,30h porque levantam antes da alvorada, com o céu pincelado de estrelas, para que a pescaria possa render com os peixes se alimentando bem cedinho. Mas, vendo que os anfitriões estavam sonolentos, resolveram ir.

Levantaram-se para despedir e, um deles, o mais barrigudo, depois de dar um passo rumo a porta de saída, ainda mastigando, resolveu voltar para apanhar outro pedaço de peixe frito e deixou o rancho comendo.

Despediu, sem agradecer a recepção.