Insistem em me presentear com relógios de pulso! Foi um xará, Santos Dumont, que “inventou” o relógio de pulso. Xará é sinônimo de homônimo e vem do tupi “xa’ra” ou “aquele que leva o meu nome”.
Usar relógio de pulso me parece um costume anacrônico, apesar do “Apple Watch” e similares. Já dei e ganhei alguns relógios de pulso, e os usei por um tempo muito curto. Os relógios parecem coleiras, cada vez mais eletrônicas, ligadas à internet. Na verdade, parecem tornozeleiras!
Algumas coisas nos impulsionam, sem que saibamos as causas. Um amigo disse que, após ler um dos contos de Julio Cortázar, nunca mais usou relógios de pulso e muito menos presentou alguém! Ao acessar o livro “Histórias de cronópios e de famas”, me pus a ler sem parar o conto “Preâmbulo às instruções para dar corda no relógio” e me deliciei.
DOMINAÇÃO
A partir da leitura deste conto, refleti e descobri muita coisa. Quando lhe dão um relógio de pulso, na verdade estão dando você a um dono. Pode até atrapalhar a sua felicidade, mesmo se a marca for muito boa com rubis e diamantes.
É você que leva o relógio de pulso para passear, mas é ele que toma conta de você lhe dando a obsessão de olhar a hora certa nas paredes, no computador e no celular. Você que o cuida para não ser roubado, não cair no chão ou se quebrar, e ainda lhe impõe o costume de comparar seu relógio de pulso com os de outros. Quando lhe dão um relógio de pulso, o presente é você para o relógio, não se esqueça disto!
Segundo Cortázar, dá para cortar o encanto e o domínio do relógio de pulso sobre você: não lhe dê mais corda ou então, tire-lhe a bateria. E agora, a cada coisa esquecida pela liberdade conseguida pela ruptura com o relógio de pulso, lhe enferrujará as peças e começará a corroer as veias de suas engrenagens e circuitos, gangrenando o sangue frio dos rubis, quartzos e chips.
A partir de agora, um outro tempo e horizonte se abrirão: as árvores soltarão suas folhas, os barcos correrão em regata, o tempo como um leque vai se enchendo de si mesmo e dele brotarão o ar, as brisas da terra, podendo-se ver a sombra de uma mulher e o perfume de um pão que acabou de sair do forno, tudo sem hora marcada!
LIBERTAÇÃO
A ruptura e a morte do relógio de pulso, nos mostrarão que se não corrermos, chegaremos antes e compreenderemos que o tempo não tem importância. Eu tinha vários relógios guardados e os joguei fora, pois não quero escravizar ninguém!
Um relógio de pulso lhe propicia apenas um pseudo-organização! Deve ser por isto que Salvador Dali detonou vários relógios, deformando-os nas telas. No livro “Ansiedade”, Augusto Cury descreveu a Síndrome do Pensamento Acelerado que está associada ao tempo, ao relógio e às cobranças. A cada página uma lembrança de vida. Ainda bem que descobri isto, mas se tivesse refletido isto mais cedo na vida, teria sido melhor!
O conteúdo de um jornal de domingo é maior do que o nosso principal escritor Machado de Assis leu durante a sua vida. Temos um excesso de informação que não se consegue acompanhar tudo no tempo do relógio, sobrando a sensação de frustração, incompetência e culpa constante. As crianças e adolescentes se retraem ou se exacerbam, perdem sua naturalidade e podem ficar agressivas, isto pode ser culpa do relógio. Para Augusto Cury, aí sobram diagnósticos e terapêuticas equivocadas de hiperatividade, depressão e outras psicopatias.
REFLEXÃO FINAL
Dar o grito da independência frente aos relógios de pulso não nos dará a felicidade, mas pode nos devolver um pouco a liberdade frente aos bips, alarmes, mensagens e recados implantados em nossos pulsos, justo o lugar onde se deveria correr, apenas, o sangue da vida e a força do que queremos!