Uma das frases mais ditas em Bauru há mais de meio século foi: “o Edson nasceu em Três Corações (MG), mas o (Rei) Pelé nasceu em Bauru". De fato, a família do pequeno Dico, primeiro apelido antes dos amigos o chamarem de Pelé, chegou a Bauru pela Estrada de Ferro da Noroeste do Brasil em setembro de 1944. O pai, o meia-atacante João Ramos do Nascimento, o Dondinho, veio para reforçar o Lusitana (que virou Bauru Atlético Clube - BAC), campeão do interior de 1946.
Em Bauru, recordam os amigos e profissionais da crônica esportiva, Pelé teve infância pobre. Primeiramente morou de aluguel na cidade em uma casa de madeira na rua Rubens Arruda, quase esquina com a rua Sete de Setembro, no Centro.
Ali, ainda como Dico, o garoto já mostrava que era acima da média até fora de campo, com uma criatividade ímpar, conforme recorda um vizinho e amigo de infância, o médico Carlos Alberto Ferreira de Menezes, 78 anos. Foi na Cidade Sem Limites que o supercraque aprendeu o futebol, nos campos de terra batida, nas ruas de paralelepípedo, no cimento do futebol de salão e depois no gramado do BAC.
Menezes conta que quando Pelé se mudou para Bauru com Dondinho e a mãe Celeste, ele tinha 2 anos e cresceu brincando com o amigo nas ruas próximas da casa, sempre em grupo de 5 a 10 amiguinhos, utilizando pipa, pião e bolinhas de gude. Bola? Era luxo. O futebol era feito com bolinho de meias.
“Pelé utilizava, ainda pequeno, mangas verdes (a fruta) para fazer embaixadinhas, descalço. Todos ficavam surpresos, de como ele conseguia fazer aquilo. Ele tinha em seu instinto ficar um passo à frente de todo mundo, em tudo o que fazia. Depois das aulas, no antigo Grupo Ernesto Monte, que ficava no cruzamento da rua Bandeirantes com a Gerson França, ele ganhava os trocados engraxando sapatos”, recorda Menezes, que já foi amplamente dito pelo Rei que foi um dos seus 10 melhores amigos da vida.
O médico Carlos Menezes relembra ainda que Dondinho teve lesões no joelho e precisou de aposentar, conseguiu emprego de serviços gerais no primeiro posto de saúde de Bauru, na rua Antônio Alves, no Centro. O trabalho foi arrumado graças ao apoio do ex-médico do Esporte Clube Noroeste Danilo Campana.
QUASE SE AFOGOU
Uma das histórias marcantes que Carlos Menezes e amigos de Bauru nunca esquecem, foi quando Pelé, com 11 anos, mergulhou junto com outro amigo, Zinho, em uma lagoinha na região da Vila São Francisco, próximo ao que é hoje a rua Felicíssimo Antônio Pereira. Ambos quase morreram afogados.
“Eles começaram a afundar e a se debater. E eu e outros amigos pequenos ficamos desesperados. Éramos menores e não sabíamos nadar. Foi quando surgiu um homem com uma vara de pescar e salvou a vida daquele menino que viria a ser o Rei do Futebol. Nunca me esqueço. Ele ainda nos deu uma baita bronca e nos botou para correr dali”, acrescenta Menezes.
A PROMESSA
Ainda na infância, de acordo com Menezes, que não guarda nenhuma recordação de fotografia do Rei, ele foi uma das testemunhas da promessa de Pelé. Era 16 de julho de 1950, quando eles brincavam na rua e viram Dondinho chorando ao lado do rádio, pela derrota de 2 a 1 do Brasil na final da Copa, diante do Uruguai, no Maracanã. “Pelé afirmou ao pai que ganharia um mundial para o Brasil, por ele. E cumpriu. Mais do que isso, ganhou três”, frisa o amigo.
DE BILÉ A PELÉ
O ainda garoto Dico também gostava de brincar no gol. E era muito bom. E na infância dele havia o goleiro José Lino da Conceição Faustino, o Bilé, amigo de time de seu pai. E quando ele defendia, ele gritava “boa, Bilé!”. No entanto, como a dicção do garoto ainda estava em formação, o “Bilé” passou a ser pronunciado pelos amigos como "Pelé".
REGRA ESPECIAL
O que pouca gente sabe é que, ainda jovem, com cerca de 14 anos de idade, Pelé motivou mudança de regra para os jogos em que ele estava em ação, devido à discrepância de sua habilidade dos demais. De acordo com o livro “De Edson a Pelé – a Infância do Rei em Bauru”, do escritor Luiz Carlos Cordeiro, a Liga de Futebol Amador de Bauru criou na época uma norma especialmente para ele: o jovem Edson não poderia passar do meio de campo.
O menino que se tornaria Rei só poderia ficar na defesa ou jogar no gol para disputar o campeonato pelo Radium, no torneio de futebol de salão de 1955. No entanto, nem mesmo a nova regra impediu o craque de levar o time a ser campeão naquele ano.
HOMENAGENS
Uma das principais discussões na cidade sempre foi se Pelé gostava ou não de Bauru, mas também se a cidade o reverenciava à altura. O Poder Público do município, principalmente a Câmara Municipal, nunca se absteve de homenagear o maior expoente do esporte do último século. Só nunca houve uma rua, praça ou ginásio batizado com seu nome, porque uma lei federal proíbe este tipo de homenagem em vida, em locais públicos.
Na Casa de Leis, Pelé, após o bicampeonato mundial pela Seleção, foi homenageado na Câmara de Bauru, com o título de “Cidadão Bauruense”, em uma extensa agenda na cidade em 1962. Na época, o presidente do Legislativo era o vereador Adenor Costa. Em 1996, ano do aniversário de 100 anos de Bauru, sem Pelé presencialmente na cidade, o Legislativo concede título de "Cidadão do Centenário" a Edson Arantes do Nascimento.
Em 1975, ele veio receber o título de Cidadão, e teve diversos outros compromissos na cidade, além de muitas outras visitas, ainda como jogador, em dias de partidas do Santos contra o Norusca.
Menezes frisa que Pelé vinha muito a Bauru, gostava de rever os amigos, mas sempre que chegava causava tumulto e muita gente o procurava para pedir dinheiro, fato que chateava o Rei.
“O QUE SOBROU”
Atualmente, a casa que Pelé comprou para os pais com salários do Santos, após o título de 1958, foi demolida e hoje não passa de um terreno baldio. O local fica situado entre os imóveis de numeral 4-28 e 4-10 da rua Sete de Setembro, Centro, quase na esquina do seu primeiro lar, na rua Rubens Arruda. Quando esta casa comprada por Pelé ainda existia, mas estava abandonada devido a imbróglio judicial, chegou a ser tombada como patrimônio cultural em Bauru, em 2010, mas foi demolida em 25 de junho de 2015.
Já o que sobrou da antiga sede do BAC, onde Pelé fez seus primeiros gols em gramado, é atualmente o supermercado Tauste da Rio Branco, que comprou o clube, mas manteve um singelo painel em memória ao Baquinho onde surgiu o Rei do Futebol.