Lançado recentemente, livro é a forma que o ex-presidiário encontrou para compartilhar uma experiência inesquecível
São Manuel - O livro, avisa o autor, não tem a pretensão de denunciar nada e ninguém. Quero apenas desapertar minha alma. A prisão de Josemir José Fernandes Prado, 50 anos, ocorria no final de 1994, numa situação obscura, sob a acusação de receptação de mercadoria. O crime pelo qual respondeu, garante ele, não era seu.
Homem de sensibilidade aguçada, encontrou na privação de sua liberdade, espaço para escrever, manuscritos esses que deram origem ao livro Diário de um detento: o livro. Antes da publicação, porém, alguns de seus versos foram parar nas mãos de Mano Brown, líder do grupo de rap Racionais MCs e se transformaram na música Diário de um detento, do CD Sobrevivendo no Inferno, de 1997.
Hoje, após o lançamento do livro -lançado no mês passado, na Bienal Internacional, no Rio de Janeiro - e várias entrevistas na imprensa, Josemir, que durante o cárcere passou a se chamar Jocenir (veja box), está sendo sondado por cineastas renomados, que têm mostrado interesse em filmar sua história. Não é para menos, já que os últimos sete anos do ex-empresário e ex-presidiário são recheados de relatos que causam, no mínimo, muita emoção, numa relação de amor e ódio.
Se os fatos descritos no livro são por si só intrigantes e excitam a curiosidade, outros detalhes dessa história e que ficaram de fora do livro, são uma atração à parte e com certeza renderiam uma outra publicação.
A prisão e a convivência com a massa carcerária ao longo de quatro anos, conta Jocenir, trouxeram uma caminhada de sofrimento, terror, angústia, aprendizado, descobertas, amor e ódio.
No livro, dividido em 19 capítulos, o autor comenta as várias fases pelas quais passou, icluindo situações de extrema humilhação quando, segundo ele, chegou a comer fezes. Logo no início do livro, Jocenir fala do flagrante ocorrido em 8 dezembro de 1994, nas proximidades de São Paulo, onde morava na época. Na seqüência vai relatando os apuros que passou nas cadeias públicas de Barueri e Osasco. Um dos capítulos é dedicado a uma rebelião à qual ele sobreviveu e por isso agradece até hoje. Ao final rezei. Rezei em voz baixa, rezei pelos meus companheiros também. Prometi que um dia publicaria a oração que fiz naquele momento.
Uma das situações mais curiosas e trágicas e que também mereceu um capítulo especial no livro, diz ele, aconteceu quando, por um equívoco, trocou as cartas que havia escrito, uma para sua mulher e outra para um colega que estava detido numa outra prisão. Lamentavelmente, o prisioneiro recebeu uma carta de amor e a mulher, uma mensagem desautorizando uma execução.
Jocenir escreve que a caminho da Casa de Detenção, o Carandiru, mesmo com o corpo bastante debilitado, não conseguia parar pensar em como seria a recepção. Pelo que diziam da Detenção, boa coisa eu não esperava.... Mas, como nem tudo que parece é, Jocenir se disse de certa forma surpreso com a receptividade. O diabo não era tão feio como tinham pintado... mesmo assim, foram meses de horrores, diz.
Cartas e poemas
O ex-empresário, que chegou a freqüentar uma faculdade, tinha uma escolaridade superior à média da maioria da massa carcerária e acredita que até por isso, passou a ser discriminado pelos próprios presos. Passei a ser um filão, uma galinha dos ovos de ouro para a extorsão, principalmente dos usuários de droga. Então, fiquei uns dez meses sofrendo agressões físicas e morais. Era preciso encontrar uma maneira de conquistar essa massa. Eu vi que o ponto mais fraco deles era a falta de escolaridade. Eles tinham muita dificuldade em redigir cartas e até em ler as correspondências que recebiam. Então eu me propus a escrever e ler cartas para alguns presos e isso logo se espalhou.
Além das cartas, Jocenir escrevia também muitos versos e dedicatórias, principalmente em datas festivas. Essas pessoas que recebiam as cartas, quando vinham visitar, queriam conhecer a pessoa que escrevia. E isso começou a fazer com que os presos passassem a sentir uma certa simpatia por mim e depois, essa simpatia acabou virando proteção, até. Eles me protegiam em razão de tudo aquilo que eu fazia.
Ele diz que através das cartas, acabou conseguido reatar muitos romances. Muitos presos, ao chegarem, acabam sendo abandonados pelas namoradas que não suportam toda a humilhação para entrar para as visitas. E às vezes eu fazia versos, poesia para essas namoradas e elas acabavam voltando atrás. Isso fazia com que eu me tornasse um herói.
Os vários cadernos com os versos do Tiozinho, como era chamado, já que beirando os 50 anos, era mais velho que a maioria, circulavam todos os pavilhões.
Redigindo o estatuto do CDL
Jocenir conta que durante o tempo em que esteve detido, não se integrou a nenhuma das facções criminosas existentes dentro dos presídios, como o Primeiro Comando da Capital (PCC) e o Comando Democrático da Liberdade (CDL). Para isso eu teria que ser considerado bandido. E eles (líderes de facções) não me viam como um bandido.
Chegando à Penitenciária Dr. Paulo Luciano de Campos, em Avaré, em junho de 1997, Jocenir, que a essa altura já era bastante conhecido por seus escritos, recebeu um convite inusitado: Os líderes do CDL me pediram para redigir o estatuto da facção, não tinha ninguém com capacidade para colocar no papel todas as normas e regras do movimento. Não via motivos para não fazer o trabalho, em nada me comprometia. Segui a orientação dos líderes e em pouco tempo apresentei meus rascunhos, eles imediatamente gostaram do texto.
Apesar de não se aliar a nenhuma das facções, Jocenir conta que presenciou cofrontos violentos entre presos de movimentos diferentes.
Transformando homens
O escritor diz que por menor que seja a pena, a cadeia é muito dura. A morosidade da Justiça provoca uma série de revolta... Porque, por menor que seja o cumprimento de uma pena, a cadeia é muito cruel pelo fato de você estar na ociosidade e com abundância de droga... A droga corrói o pouco de humanidade que esses jovens trazem ao chegar da rua. Mulher e companheira
Claúdia, a mulher de Jocenir merece um capítulo à parte nessa história. Durante todo o tempo em que ele esteve preso, ela o apoiou e em meio a dificuldades de toda ordem, conseguia não levar seu sofrimento para dentro das prisões. Era uma forma que ela encontrava de não deixá-lo ainda mais angustiado. Só quando conquistei a liberdade pude ver de perto a que ponto chegara minha companheira. Na casa, em São Manuel, onde ela veio morar já que sua família era do Interior, não havia quase nada, conta Jocenir. O estado era de miséria. Ultimamente, Cláudia estava dormindo no chão, o fogão só tinha uma boca e a geladeira, sem porta, servia para guardar sapatos. Ela se submetia a subempregos, dependendo de cesta básica de assistência social. Antes, era uma mulher que sempre tinha tudo.
Grande parte da força que o ex-presidiário encontrou para sobreviver ao cárcere, ele credita ao apoio que recebia da família, principalmente da mulher, filhos e irmãos. Como era confortante recebê-los em dias de visitas.
Ao conquistar a liberdade, em 13 de novembro de 1998, tudo parecia diferente de antes da prisão, lembra. Por um instante, olhei para trás e procurei as muralhas frias... Lembrei-me de cada detalhe e situação dos últimos anos, os companheiros, as torturas, os gestos de bondade, a solidariedade, a luta pela sobrevivência, as revoltas, as dores da solidão. Ficou tudo gravado na minha memória.
A dificuldade que o esperava para recomeçar a vida era a mesma enfrentada por milhares de homens e mulheres que um dia passaram pela prisão.
Hoje, ainda sem conseguir um trabalho, Jocenir vai se virando como pode. Minha passagem por este mundo não será esquecida, quero contar um pouco dela, diz acrescentando que gostaria de ser convidado para dar palestras, principalmente a estudantes de Direito. Acredito que posso contribuir muito já que vários desses estudantes estarão acompanhando, num futuro próximo, a luta de quem entra ou quer deixar o sistema prisional.
Serviço
O contato com o autor do livro pode ser feito através do fone 0800 770 03 34.
Não está no livro
Jocenir conta que passado algum tempo na prisão, começou a sentir falta de óculos. A essa altura eu já escrevia bastante, para mim e para outros detentos. Já vinha pedindo há muito tempo para a diretoria permitir que eu fosse à rua, com escolta, até pago particular, fazer um exame de vista.
Como o exame não aconteceu, a saída que o presidiário encontrou foi emprestar os óculos de um outro preso, num grau que, em parte, aparentemente resolvia o problema. Mas esses óculos ele usava para trabalhar durante o dia... Então, à noite, eu aproveitava a luminosidade da muralha, debruçava o papel no peitoril da janela. Ou no reflexo da muralha ou na luz da lua eu escrevia o livro. De manhã, às 5 horas ele (o dono dos óculos) batia na minha cela e os pegava de volta. Parece poético, mas eu não via poesia nisso não.
Nome errado
Na realidade, durante o tempo em que esteve preso, o escritor era conhecido por Tiozinho, por causa da idade, quase 50. A troca de Josemir por Jocenir deu-se a partir da visita que o músico Mano Brown fez à Detenção. Ao se interessar por alguns versos e destacar algumas folhas de um dos cadernos, com muita pressa porque o horário de visitas terminava, Brown perguntou o nome de Josemir e acabou grafando-o como Jocenir. E assim ficou conhecido o autor da letra e mais tarde do livro, que leva o mesmo nome.
A música, uma referência do trabalho do grupo de rap, deu origem ainda ao premiado videoclipe dirigido por Maurício Eça e Marcelo Corpanni.