18 de dezembro de 2025
Geral

Área central é toda de imóveis foreiros

Josefa Cunha
| Tempo de leitura: 8 min

Todos as propriedades situadas no Centro de Bauru pertenciam à Igreja e foram transferidas a um único dono. Muitos moradores dessa região até hoje não são proprietários plenos do imóvel em que residem

Do córrego das Flores até a foz do ribeirão Bauru, subindo por este em linha reta até a foz do córrego da Grama e depois até 70 metros acima da rua 15 de Novembro. Esta é a demarcação original das terras enfitêuticas (foreiras) de Bauru, ou, para ser mais claro, áreas repassadas a terceiros mediante pagamento de taxas anuais. Os limites acima descritos formam um triângulo que hoje compreende o Centro da cidade. De um lado está a avenida Nações Unidas (córrego das Flores); de outro, as ruas capitão João Antônio, Silveira São João e Mário Pinheiro, e, por fim, toda a extensão que margeia as linhas férreas.

Se no começo da formação da cidade, a área era um imenso campo desabitado, hoje concentra os metros quadrados mais povoados e valorizados de todo o município. Além da riqueza arquitetônica dos prédios antigos que resistem ao tempo, é na área central que estão as instituições bancárias e o coração comercial de Bauru, bem como as residências mais tradicionais. Todas essas centenas de terrenos pertenceram um dia à Igreja Católica, que os repassou a uma única família, detentora até hoje do domínio pleno de muitas deles.

Os moradores mais velhos da região sabem que seus imóveis são ou foram objetos de enfiteuse. Em algum período, seus antepassados ou eles próprios tiveram que pagar pensões anuais à família Cintra, que comprou da Igreja Católica o domínio das terras, ou bancar valores mais altos para adquirir o pleno direito sobre as propriedades.

Desde que a Igreja vendeu as terras, em 1919, a família do advogado Antonio Almeida Cintra passou a receber pela ocupação ou venda dos lotes. A sociedade civil Cintra & Cia. foi criada para administrar todos os imóveis e até hoje mantém-se ativa por conta disso. Grande parte dos lotes foi resgatada integralmente, mas muitos ainda permanecem com o vínculo da enfiteuse. Os herdeiros desses terrenos - a maioria já com edificações - raramente sabem da limitação de domínio existente nos imóveis e acabam sendo surpreendidos.

É o que aconteceu na última semana com os irmãos do empresário Fernando Albertini Cornélio, que se reuniram para receber o imóvel do pai em doação. Para evitar os trâmites e os custos do inventário, Fernando sugeriu a doação do bem em vida, procedimento que teria um custo de apenas R$ 800,00 para o rateio entre os sete irmãos.

Ao tentar oficializar o acordo, porém, Fernando ficou sabendo que o terreno com a casa onde mora seu pai, hoje com 85 anos, pertencera à família Cintra, ou seja, estava situado na área das terras enfitêuticas de Bauru. Os advogados que defendem os interesses da sociedade civil Cintra & Cia. informaram-lhe que a doação poderia transcorrer sem problemas, mas que o domínio pleno só ocorreria mediante o pagamento de uma porcentagem sobre o valor do imóvel.

O empresário e os irmãos ficaram assustados com o fato de terem que pagar mais R$ 4 mil para desvincular a propriedade da sociedade. Eles, por sinal, não teriam condições de fazê-lo no momento. O pai, entretanto, lembrou que no passado já havia pago pelo resgate integral do imóvel e que guardou o comprovante de quitação. O recibo realmente existia: estava guardado e quase se desmanchando em razão do tempo. Ainda bem que achamos esse recibo, mas se meu pai não tivesse falado, talvez nunca iríamos saber que o pagamento já havia sido efetuado. Nos livramos desse custo extra, aliviou-se Fernando.

O historiador Gabriel Ruiz Pelegrina é outro que reside em uma propriedade enfitêutica, mas não pretende resgatar seu domínio pleno. O terreno onde construiu sua casa foi herdado sem nada. Eu fiz minha parte, que foi construir a casa, mas não vou deixá-la de mão beijada. Se meus filhos ou netos quiserem obter a propriedade direta, vão ter que pagar, avisou.

Quando há a enfiteuse, o imóvel pode ser doado a herdeiros sem custos. Já a transação de venda exige o pagamento de 2,5% do valor venal do imóvel (laudêmio) ao detentor do domínio pleno - a sociedade civil Cintra & Cia., no caso de Bauru. Quando a intenção é o resgate do domínio pleno, ou seja, a desvinculação da enfiteuse, o percentual é acertado em negociação comercial. Atualmente, a sociedade civil Cintra & Cia. tem cobrado 8% para transmitir a propriedade plena.

O oficial interino do 1.º Cartório de Registros de Imóveis de Bauru, Washington Baptista, não sabe precisar a quantidade de imóveis enfitêuticos ainda existentes, embora afirme que a maioria das pessoas, quando informadas da situação, opte pelo resgate. A diferença entre a taxa de laudêmio (2,5%) e resgate é pequena e isso acaba servindo de incentivo para a aquisição, disse Baptista, confirmando o desconhecimento das pessoas mais novas. Muita gente se surpreende com essa história. Hoje (última quinta-feira) mesmo, vamos dar a notícia a uma pessoa que está comprando um imóvel aqui no Centro. A enfiteuse não consta no título, mas ele vai ter de pagar se quiser ter o domínio pleno do imóvel.

Nos dias de hoje, o pagamento do foro ou pensão saiu de cena, sendo o laudêmio e a taxa de resgate pleno os únicos resquícios do arcaico instituto. Os foros caíram no esquecimento porque foram estabelecidos quando dos contratos originais, em moeda da época e valor invariável. Hoje, seriam coisa de centavos ou menos que isso. Segundo Baptista, o pagamento ainda é previsto em lei, mas não é aplicável por conta dos ínfimos valores. Ninguém paga e ninguém cobra.

Legalmente, o resgate do domínio pleno se daria com o pagamento dos 2,5% do laudêmio e mais o equivalente a 10 pensões anuais. Como estas são desprezíveis em termos de valores, tornou-se praxe a livre negociação comercial.

Família real vive do instituto

Não fosse o instituto da enfiteuse, os descendentes da monarquia brasileira talvez estivessem longe do glamour que ainda teimam ostentar. A família Orleans e Bragança, descendente direta do rei Pedro II, vive das pensões e laudêmios dos imóveis de Petrópolis, no Rio de Janeiro.

Os que não pagam por mês para usufruir das propriedades, pagam o laudêmio de 2,5% quando as vendem. Poucos são os que partem para o resgate do domínio pleno do imóvel em Petrópolis, pois as taxas para tanto chegam a 20% do valor de venda. Na verdade, a família real não tem interesse na desvinculação e faz o que pode para perpetuar sua fonte de renda.

Em 1987, alguns deputados tentaram extinguir o instituto da enfiteuse, mas a iniciativa acabou frustrada por lobby da própria Igreja Católica, que ainda goza do privilégio em algumas de suas dioceses. Apesar dos contrários, há quem ache justa a cobrança perpétua, pois a cessão original da terra foi totalmente gratuita.

Vale registrar que a Marinha Brasileira também é proprietária constitucional de toda a orla marítima do País, na chamada enfiteuse pública. Por ela, a força armada recebe taxas referentes à cessão, aluguel ou venda das propriedades à beira-mar. As taxas não são lá de grande valor, mas o total torna-se considerável quando somado o universo de todos os pagantes.

Um pouco de história

O surgimento das terras enfitêuticas em Bauru confunde-se com a própria história de fundação da cidade. O município teve origem a partir de duas doações de terras: a primeira feita em 1885 por Antonio Teixeira do Espírito Santo, e a segunda, em 1893, por Veríssimo Antonio Pereira. Unidas, as glebas formam exatamente a atual faixa dos imóveis foreiros, formando um triângulo que tem a avenida Nações Unidas, as margens das linhas férreas e a rua Capitão João Antonio, bem como toda sua extensão, como lados.

As terras foram doadas aos santos de devoção e, posteriormente, acabaram sob a administração da Igreja. A falta de condições em controlar toda a gleba e o receio de invasões, porém, fez com que a Igreja vendesse, em 1919, os terrenos ao advogado jauense Antonio de Almeida Cintra, que passou a ter direito aos foros atrasados e à venda dos imóveis. Sabe-se que a quantidade de devedores era grande e que a Igreja, por seu inerente caráter solidário, não podia se arriscar na cobrança contumaz.

Na época, representada pela Fabrica do Divino Espirito Santo, a instituição achou melhor transferir o peso e ficar apenas com alguns dos imóveis, a saber: praças Dom Pedro II, Municipal e da República (onde hoje está a igreja Nossa Senhora Aparecida), 44 metros da rua Araújo Leite, 88 metros da rua Aparecia e 44 metros da rua das Flores (parte da Nações), o terreno da igreja central (atualmente, a Catedral do Divino Espírito Santo), a Casa Paroquial e outras quadras adjacentes.

Para administrar tamanha área, o advogado fundou na década de 40 a sociedade civil Cintra & Cia., que teve início com mais de três mil terrenos - praticamente todos os edificados - e a perspectiva de um crescimento habitacional extraordinário. Em 1942, já existiam 20 vilas contíguas aos terrenos foreiros. Somente a Vila Falcão contava 10 mil moradores.