Participantes brasileiros do encontro mundial que discutiu o racismo reclamam de tratamento desigual por causa da língua
A 3.ª Conferência das Nações Unidas contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e as Intolerâncias Correlatas, realizada entre os dias 31 de agosto de 7 de setembro, em Durban, na África do Sul, terminou não só de forma frustrante. O evento acabou sendo palco de um tipo de discriminação que não estava na pauta: a feita por causa da língua. Os participantes latinos sentiram-se excluídos das discussões devido à falta de consideração com o idioma das América Central e do Sul.
De acordo com os diretores do Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo (Apeoesp), Duílio Duka de Souza e Luzia Conceição Quinezi, que estiveram presentes à Conferência, só depois de muita luta e discussão eles conseguiram que as palestras e painéis do evento fosse traduzidos para o espanhol. Ninguém quis traduzir do inglês para o português e nem vice-versa. Ficamos sem voz no evento, disse Duka.
Para Luzia, a falta de consideração com os povos latinos foi uma forma de discriminação dentro de um evento que tinha como objetivo discutir justamente o racismo e a xenofobia.
A Conferência chegou ao seu final com apenas 99 países representados, dos 173 que iniciaram o evento. Questões políticas - como o boicote dos Estados Unidos - e propostas complexas - como a indenização aos descendentes de escravos - acabaram desviando o propósito do encontro, que terminou com uma declaração moderada.
Na entrevista a seguir, Duka e Luzia destacam as principais polêmicas criadas no evento e falam do fortalecimento dos movimentos populares na América Latina pós-Conferência.
JC - Na verdade ocorreram duas conferências contra o racismo.Duka - As Ongs (Organizações não-Governamentais) do mundo todo fizeram uma conferência paralela para contrapor ao evento oficial, que tem assento só para o governo. Nós, sociedade civil organizada, tínhamos direito de participar apenas como ouvintes, sem direito a voto, na Conferência principal. Por isso, realizamos uma paralela para discutirmos nossas idéias.
JC - Vocês enfrentaram algum problema durante a Conferência?Luzia - Nós tivemos uma dificuldade muito grande com relação à língua. Todos os painéis e palestras eram em inglês. Nós tivemos que fazer uma manifestação para que pudéssemos ter a tradução pelo menos em espanhol. Mesmo assim, nós encontramos uma dificuldade muito grande. Foi feita a tradução do inglês para o espanhol. Mas nós, do Brasil, quando íamos intervir, ninguém entendia. Do português para o inglês não tinha tradução. Nós acabávamos sendo só ouvintes, porque ninguém nos entendia.
Duka - É bom que se registre que os tradutores se recusavam a traduzir a língua portuguesa.
JC - Era uma forma de discriminação dentro da própria Conferência sobre o racismo...Duka - ...nós precisamos fazer esse movimento, com o apoio dos [representantes] países da América Latina, no sentido de fortalecer essa nossa manifestação para que se fizesse a tradução, no mínimo, para o espanhol (...) a delegação brasileira e toda a população do nosso País acabou sentindo-se prejudicada porque todas as ricas intervenções nossas não eram compreendidas.
JC - Essa conferência paralela tirou algum documento com idéias divergentes do evento?Duka - Na verdade, o objetivo desse evento paralelo é formular as propostas que atendem aos anseios populares. Elas são encaminhadas aos governos que têm assento na Conferência principal, para que eles apresentem as reivindicações do povo. É uma forma de exigir uma postura mais próxima da realidade de cada povo. No caso do Brasil, o discurso do ministro da Justiça José Gregori, que esteve representando o nosso País, foi um verdadeiro retrocesso a tudo o que tínhamos discutido na conferência da América Latina, realizada em dezembro passado, no Chile. Ele pulverizou a luta do nosso movimento. O ministro reconheceu que no Brasil há discriminação de homossexuais e reforçou muito esse ponto. Nós não achamos que ele está errado, mas a discussão que nós queremos fazer com o governo brasileiro é na questão dos negros, do tráfico transatlântico.
JC - Vocês são favoráveis à proposta levantada durante a Conferência, de indenização aos descendentes dos escravos? Duka - Nossos antepassados foram seqüestrados da África. Essa história de falar que os negros vieram para o Brasil (de livre e espontânea vontade), como os livros contam, é mentira. Ninguém veio. Eles foram trazidos, arrancados da África. Para indenizar esse povo, não dá para fazer um cheque para cada um. Principalmente no Brasil, onde há tanta miscigenação. Nesse caso, a gente fez uma proposta na qual o governo teria que adotar políticas públicas de ações afirmativas. Isso significa educação, habitação, emprego, salário para o povo negro e descendentes.
JC - As cotas para negros em universidades e empresas fariam parte desse pacote?Luzia - Exatamente. É uma parte do que nós reivindicamos do plano de ação afirmativa. Mas, só isso não basta. É apenas um ponto dentro de uma lista de outras coisas.
JC - De onde sairiam os recursos para a implementação dessa política pública de ação afirmativa? Duka - Quando falamos em tráfico transatlântico, lembramos imediatamente de colonialismo. Os países que hoje são donos das maiores riquezas são aqueles que nos exploraram durante séculos, levando café, madeira, cana, ouro, metais preciosos, etc. Se hoje temos essa dívida externa enorme, isso não é culpa do povo brasileiro, muito menos dos afro-descendentes. Na nossa avaliação, essa dívida deve ser perdoada pelos Estados Unidos. O dinheiro que é destinado para o pagamento dos juros desse montante deveria ser revertido em políticas públicas.
JC - No documento final da Conferência não foi feito nenhum pedido formal de desculpas com relação à escravidão. O que vocês acharam disso?Duka - Não dá para falar de cidadania se não se reconhece o crime de lesa-à-humanidade que foi a escravidão, o tráfico transatlântico. A Conferência não reconheceu a escravidão como crime. Isso porque, se eles confirmassem o crime e fizessem o pedido de desculpas formal, teriam que indenizar todos os escravos e descendentes.
JC - Todos os países foram unânimes na questão do não-reconhecimento da escravidão?Duka - Basicamente os que não quiseram reconhecer foram os Estados Unidos, Canadá, União Européia e Israel.
Luzia - Os Estados Unidos se recusaram insistentemente a concordar com reparação da escravidão e com pedido de desculpas pelo crime do tráfico transatlântico.
JC - O boicote dos Estados Unidos causou um certo desconforto na Conferência. Você acredita que isso possa ter sido um estopim para o ataque terrorista ocorrido na última semana? Duka - A ira contra os Estados Unidos não nasceu na Conferência e nem depois dela. A ira é secular. Isso porque trata-se de um país de governos prepotentes, que se acham os donos do mundo. À medida que eles, arrogantemente, ameaçam não participar da Conferência Mundial, mandam pessoas de segundo escalão e essas pessoas ainda levantam o nariz e se acham senhores da situação, isso tudo gera um certo rancor contra eles. Os Estados Unidos já ameaçaram não participar da Conferência desde as reuniões preparatórias ocorridas em Genebra, no começo de agosto. A alegação deles é que eles já tinham resolvido o problema de reparação junto aos negros por lá.
Luzia - Vale lembrar que, quando falamos Estados Unidos, estamos nos referindo ao governo de lá. Várias OnGs norte-americanas estava explicitamente contrárias ao próprio governo. Muitos ativistas de lá ficaram do nosso lado. O governo é que se retirou e se contrapôs ao que estávamos lutando.
JC - Houve uma polarização das discussões em torno de Israel e os palestinos como se comentou?Duka - Na Conferência houve uma adesão de solidariedade de todas as nações em defesa da Palestina. Israel sentiu-se acuado, dizendo que a Conferência tinha se transformado num tribunal, onde existe um culpado (Israel) e um inocente (os palestinos). Por conta disso, os israelenses se retiraram do evento. Isso criou várias discussões.
JC - Essa polêmica acabou atrapalhando a Conferência? Duka - A partir dessas discussões, Canadá e União Européia quiseram se afastar do evento. Na nossa avaliação, enquanto OnGs, entendemos que a Conferência acabaria ali se esses países saíssem. Eles continuaram participando, mas criaram muita polêmica nas discussões, tornando os debates cansativos e longos. Isso esvaziou a Conferência. Os representantes de vários países acabaram se retirando.
JC - O resultado acabou ficando muito óbvio?Duka - Sim. Eles acabaram dizendo o que já se sabe. Ou seja, eles reconheceram que há discriminação contra negros, homossexuais, mulheres. Mas, reparação que é bom, nada. Enfim, reconheceram, mas não fizeram nada para mudar esse quadro.
JC - Mas, o fato da comunidade internacional reconhecer a necessidade de se discutir a injustiça social já não é um avanço? Luzia - Para nós foi avanço, pois muito do que o governo expôs na Conferência foi resultado das discussões da sociedade civil.
JC - Na prática, o que a Conferência trouxe de satisfatório para a comunidade mundial?Duka - Eu acho que fortaleceu os movimentos das classes menos favorecidas, dos sindicatos.
Luzia - A própria discriminação que nós sofremos lá por causa da língua e a falta de resultados mais concretos fizeram com que os povos da América Latina decidissem intensificar a luta pela igualdade social.