Delegado Mauro Marcelo de Lima e Silva, da Academia de Polícia, diz que crimes pela Internet desafiam o poder público.
Nos últimos anos a polícia brasileira, assim como a polícia de todos os países do mundo, tem gasto muito tempo e recurso para investigar uma modalidade de infração recente: os crimes cometidos pela Internet. Cada vez mais comuns, eles se diferenciam dos crimes tradicionais, principalmente porque são cometidos, em muitos casos, por pessoas que, no dia-a-dia, não infrigiriam a lei. Ou seja, escondida atrás do monitor, qualquer pessoa com um desejo de vingança ou mesmo apenas com vontade de divertir-se pode acabar cometendo um crime por se julgar protegida.
O ex-chefe do Setor de Crimes pela Internet da Polícia Civil e professor de Crimes pela Internet na Academia da Polícia, delegado Mauro Marcelo de Lima e Silva, trabalha com esse tipo de infração desde o seu surgimento no Brasil, em 1995. Em visita a Bauru, onde ministrou a palestra Crimes no ambiente virtual e crimes com alta tecnologia, durante o Simpósio de Atualização Jurídica da Delegacia Seccional de Polícia de Bauru, ele concedeu uma entrevista ao JC. O delegado explica porque é preciso de uma legislação especial para pôr fim a esse tipo de crime.
Jornal da Cidade - Desde quando a polícia tem um equipe que investiga os crimes realizados pela Internet?Mauro Marcelo de Lima e Silva - Desde 1995, quando aconteceu o primeiro crime pela Internet no Brasil. Foi um caso de uma jornalista que foi ameaçada por e-mail. Ou seja, a Internet foi usada como principal ferramenta para que se praticasse o crime de ameaça. Em 48 horas nós conseguimos rastrear a mensagem e prendemos o acusado, coletamos provas no computador dele, que foi apreendido, e ele foi condenado. Inclusive ele era um analista de computadores e teve uma pena exemplar: foi condenado a dar aula de informática na Academia de Polícia para os novos policiais. Foi até uma condenação didática.
JC - Dessa época para cá os crimes aumentaram?Lima e Silva - É de 1995 até o hoje os crimes têm aumentado ano a ano.
JC - Quais são tipos mais comuns de crimes praticados pela Internet? Lima e Silva - Isso é um dado empírico, baseado nos casos que chegam ao nosso conhecimento porque é impossível saber o que acontece porque as pessoas não nos contam. Curiosamente, 80% dos crimes cometidos pela Internet são crimes contra a honra, como injúria, calúnia e difamação, e ameaça. Existe uma explicação para isso. O ambiente virtual, a Internet, tem uma estrutura extremamente anárquica, onde predomina o anonimato. Então pessoas estão cometendo condutas criminosas pela Internet, que eles jamais fariam na vida real.
JC - Por exemplo?Lima e Silva - Se uma pessoa não gosta do prefeito aqui de Bauru, ela não vai pegar um spray e sair de madrugada pixando frases contra o prefeito pelos muros da cidade porque pode ser pega. Agora, na calada da noite, no escurinho do quarto, por trás da tela do computador, ele monta um site, com a foto do prefeito, hospeda num provedor gratuito nos Estados Unidos e mete o pau no prefeito. É por isso que os crimes estão crescendo e são, na maioria dos casos, de injúria, calúnia, difamação e ameaça. O namorado briga com a namorada, pega umas fotos que tem dela e põe na Internet, ou pega os dados dela e coloca num site de encontros eróticos como se a ex fosse uma garota de programa. Ou ainda, o moleque pega o cartão de crédito escondido do pai, faz compras e manda entregar na casa de amigos. Esses crimezinhos simples, elementares, têm acontecido com freqüência.
JC - E os crimes mais graves?Lima e Silva - Acontecem também fraudes financeiras, fraudes de cartão de crédito, no home banking, no e-commerce, transferências ilegais de dinheiro e outros casos que deixam o poder público pensando em até que ponto vão chegar essas situações. Há casos em que os hackerzinhos estão invadindo bancos de dados de hospitais... Imagina você invadir o banco de dados de um hospital e mandar dar glicose para um paciente que é diabético. Ou então você invade o sistema do hospital e desliga os equipamentos de emergência durante uma cirurgia; ainda há a possibilidade de que alguém invada o sistema de controle de tráfego de um aeroporto e provoque uma colisão de aviões; ou de se entrar no sistema de controle de uma represa e mandar abrir as comportas para inundar uma cidade próxima. Então já se começa a trabalhar com planejamento de cenários para se ver que o ambiente virtual, apesar de melhorar a qualidade de vida do cidadão é um grande desafio para a atividade do poder público e da polícia.
JC - Nesse aspecto a Internet deu a algumas pessoas a oportunidade de cometer crimes que normalmente não cometeriam?Lima e Silva - É verdade. E a tecnologia avança de uma maneira muito mais rápida do que a nossa capacidade de assimilá-la. E como a gente se envolve com Internet, que não tem fronteiras, acaba lidando com problemas culturais. Uma situação que é crime no Brasil pode não ser em outro, ao passo que um crime lá fora pode não ser punido aqui. Por exemplo, um iraniano, através da Internet, hospeda um material de pornografia adulta num provedor brasileiro. Pornografia adulta não é crime no Brasil, só que no país dele ele pode até ser condenado à morte. A mesma coisa acontece se um brasileiro hospeda num site nos Estados Unidos, um material sobre racismo. Racismo é crime aqui mas nos Estados Unidos, não. Lá você pode ser racista, pode ser anti-semita, da Klu Klux Klan, porque segundo a segunda emenda da constituição americana, ser racista não é crime, é a livre manifestação de pensamento.
JC - Existe um perfil da pessoa criminosa que age pela Internet?Lima e Silva - Existe um perfil do hacker. A hegemonia é masculina. São homens movidos pelo sentimento de desafio. São pessoas que gostam de ficção científica, gostam de jogar xadrez... Existe uma série de características típicas. Nós não temos aqui no Brasil uma metodologia científica para traçar o perfil do hacker. O perfil que eu citei é o feito com metodologia científica para os hackers nos Estados Unidos. Só que todos os hackers que nós prendemos aqui se encaixam nesse mesmo perfil.
JC - O crime na verdade é só um desafio, uma grande brincadeira?Lima e Silva - É como se fosse uma grande brincadeira. Eles estão fazendo coisas sem pensar, que os jovens sempre fizeram na adolescência, molecagens. Só que agora eles fazem na Internet, sem saber que estão fazendo parte de uma conduta criminosa.
JC - Desde o primeiro crime pela Internet, em 1995, até agora são seis anos. Por que ainda não há uma legislação que puna esse tipo de infração?Lima e Silva - O grande problema da legislação é que existem vários projetos de lei em andamento no Congresso sobre crimes na Internet. Porém eu só estou vendo a criação de novos tipos penais. Quer dizer, em termos jurídicos, a criação de artigos, de leis penais, mas ninguém fala em processo penal. A grande dificuldade do poder público é coletar provas, indícios e materialidades nos crimes. A gente está lidando com crimes que são feitos num clicar de mouse. A pessoa pode usar um computador no Brasil, através da Europa, para cometer crimes na Austrália. São vários países envolvidos num clicar de mouse. E a Justiça brasileira exige a carta rogatória para se conversar com outros países e isso demora dois anos para se cumprir.
JC - O que precisa ser feito?Lima e Silva - Precisamos de legislação para punir os novos crimes, mas, principalmente, de legislação que possibilite o poder público a agir com maior rapidez e eficiência.
JC - Por enquanto, então, esses crimes são enquadrados como os convencionais? Lima e Silva - O que as pessoas precisam entender é que a Internet é uma nova ferramenta para a prática dos velhos e conhecidos crimes. Então, praticamente todos os crimes que existem no Código Penal e na legislação podem ser cometidos pela Internet. Um estelionato, uma ameaça, uma fraude, tudo pode ser cometido pela Internet.
JC - O ideal seria uma legislação internacional?Lima e Silva - Seria, mas isso é impossível. O ideal seria um tratado internacional. Só que esse tipo de tratado implicaria em dizer para os americanos, por exemplo, que a segunda emenda da constituição deles é muito flexível, dizer para os iranianos que Carnaval não tem nada demais... Como você vai mudar a cultura dos países? É praticamente impossível um tratado internacional em matéria de leis. Agora é preciso ter um tratado internacional para agilizar a troca de informações entre os países. O que o poder público precisa é agilidade para investigar. Nós fazemos muitas investigações simuladas e se a gente tem a colaboração dos provedores e agilidade, é uma questão de horas ou de dias para esclarecer qualquer crime.
JC - Existe algum caso curioso ou muito diferente que o senhor lembra-se nesses últimos seis anos?Lima e Silva - Tem um caso curioso que aconteceu aqui mesmo em Bauru, quando um menino ameaçou o então presidente americano Bill Clinton por um e-mail anônimo, em inglês. Alguém pode roubar o meu carro sem deixar vestígios, mas ninguém pode cometer um crime sem vestígios na Internet. Toda conduta na Internet deixa rastros, deixa vestígios. As pessoas às vezes não sabem disso. O que aconteceu? Esse menino com um e-mail anônimo, ameaçou o Bill Clinton. Os americanos têm uma lei federal que estipula que toda ameaça feita ao presidente precisa ser investigada. Eles mandaram alguns policiais para o Brasil para investigar esse caso e nós descobrimos o provedor e depois o autor da ameaça. Mas não é só esse caso, houve um ano em que tivemos umas 50 investigações sobre e-mails anônimos contra o governo americano.