22 de dezembro de 2025
Pesca & Lazer

História de Pescador: O piloteiro analfabeto e o professor


| Tempo de leitura: 4 min

Por gostar muito daquela canção sertaneja “Lá no pé da serra”, acabei comprando uma casinha branca que fica perto da barranca do rio Paraná, na última cidade do nosso Estado, na última rua da cidade e última casa da rua.

Mesmo em reformas de ampliação e adaptação que não acabam mais, meu amigo Marcos Angelo Moral, professor de física da nossa rede oficial, convidou-se para ir visitá-la e também pescar nos rios Paraná e Paranapanema e foi logo anunciando:

- Minha pescaria é diferenciada. De dia eu não pesco, só de noite. Chegando lá, vou derrubar uma árvore dentro do rio, na cabeceira de uma ilha, para fazer um rebojo; depois vou jogar uns 500 quilos de bolachas Ailiram para cevar os peixes; no primeiro dia ninguém pesca, mas à noite é só armar meus anzóis de galho, espinhéis, redes, jogar tarrafas, soltar umas bombas...

Assustado com o ânimo do amigo, fui logo desconversando e explicando que a casa ainda estava em reformas...

- Não tem problema. Eu acampo no seu quintal mesmo.

- Mas você não tem barraca, fogão, lampião e essas tralhas todas de acampar.

- Não tem problema. Você me empresta a sua.

- Mas você também não tem barco, motor, carreta para pescar em separado e fazer sua pescaria diferenciada.

- Não tem problema. Você me empresta aquela carreta com aquele barco e aquele motor que estão guardados lá em Avaí.

Eu já não estava mais conseguindo arrumar desculpa e tentei uma última tacada:

- Você também não tem arrais para pilotar barcos, não tem experiência, não tem carteirinha de pescador...

- Assim você me ofende. Meu nome é Moral e não admito que duvidem de mim. Sou Mestre Arrais, já pesquei na maioria dos grandes rios brasileiros e só no Pantanal pilotei desde Marilândia até Anaurilândia.

Não discuti mais. Como eu tinha que ver uns serviços por lá, levei meu “convidado” que convidou outro professor para com ele pescar, conforme ele disse, no nosso rancho do Pontal do Paranapanema.

Já na barranca do rio Paraná, tralhas e barcos preparados e separados para partirmos cada qual para o seu lado, disse eu ao amigo:

- Pronto Marcão, meu barco agora é todo seu. Faça a sua pescaria diferenciada e boa sorte.

Marcão estava meio sem graça, notei que estava fora do seu estilo habitual, mas mesmo assim tomou assento do lado esquerdo do bote. Estranhei.

Depois procurou a chave de contato, o acelerador com o pé direito e a embreagem com o esquerdo, mas é claro, não encontrou. Achou a mancha e tentou acelerar de mão trocada como se fosse uma motocicleta e nem notou que o motor estava fora d’água.

Desta vez não só estranhei como assustei. O amigo não tinha a menor noção do que estava fazendo e como já tinha mesmo emprestado as minhas tralhas, emprestei-lhe também o meu piloteiro Lino, analfabeto de carteirinha.

Para evitar que acontecesse algum problema maior, decidi que iríamos todos fazer a minha pescaria de piaparas no lago formado pela barragem de Porto Primavera, que naquele tempo tinha cerca de 20 quilômetros de largura, mas hoje tem mais.

Programamos ficar por lá das 9 às 18h obedecendo aos horários de aclusagem, mas por volta das 17h o piloteiro Lino observou uma grande nuvem de pó vermelho que se levantava pelo lado matogrossense e como fazia parte do seu trabalho, informou:

- É ventania muito forte nalguma terra arada, duas léguas adentro no Mato Grosso e temos de sair daqui imediatamente.

- Mas está longe, disse o professor.

- Tem 30 quilômetros, mas o vento por aqui chega a 90 quilômetros por hora (km/h). Se o professor sabe fazer conta, então divide 90 por 30, dá três; depois divide uma hora por três que dá 20 minutos só, respondeu o piloteiro.

- E daí?

- Daí que estamos bem no meio do lago a dez quilômetros da margem. Nossos motores fazem 30km/h. Então se o professor sabe fazer conta, divide 10km por 30km/h, de novo dá 20 minutos só.

- Mas 20 minutos só pra quê?

- Só 20 minutos para sairmos daqui vivos!

Então saímos dali como que voando e rezando com nossos barcos dando saltos espetaculares. Em 20 minutos só, estávamos a salvo, protegidos pelas altas paredes da eclusa, enquanto passava sobre nossas cabeças o grosso do vendaval vermelho de poeira misturado com objetos que não conseguimos identificar. Ficamos imaginando o que teria acontecido se não tivéssemos saído do lago a tempo.

Olhei para o outro professor convidado do convidado e vi que ele chorava lembrando das suas filhas, enquanto o Marcão esvaziava uma garrafa de pinga com sucupira, diretamente pelo gargalo. Aproveitei aquele momento de silêncio para tirar o meu boné e agradecer aos céus por ter nos livrado daquela situação e pedindo ainda uma fórmula matemática, física ou química, semelhante aquelas do piloteiro analfabeto, que me livrasse também do Marcão.

Esse pedido até hoje não tive a graça de receber, pois o Marcão ainda mora na casa ali ao lado. (Eurico de Oliveira é aposentado, pescador e contador de histórias)