15 de dezembro de 2025
Auto Mercado

Uma lenda chamada Guido Scanferla

Marcelo Ferrazoli
| Tempo de leitura: 4 min

Conversar, em bom e fluente português, com o italiano Guido Scanferla é, acima de tudo, um privilégio. É ter a rara chance de conhecer um homem que participou dos primórdios das corridas do automobilismo de competição no Brasil, principalmente do tempo das milhas nacionais, realizadas na década de 50 no autódromo de Interlagos, em São Paulo.

As várias, riquíssimas e inesquecíveis experiências no esporte acompanhadas de perto por Scanferla marcaram para sempre sua vida e serviram para transformar um sonho alimentado desde menino em realidade: tornar-se um excelente mecânico. Graças a sua imensa capacidade na área teve a honra, destinada a poucos mortais, de conviver com personagens que marcaram época na Fórmula 1 e no automobilismo nacional.

Entre eles, destacam-se pilotos do nível de Stirling Moss, Gino Munaron, Peter Collins, Von Trips, Phil Hill, Luigi Musso, Mike Hawthorn, Chico Landi, Celso Lara Barbelis e, principalmente, o mito argentino Juan Manuel Fangio, primeiro pentacampeão mundial de Fórmula 1. Chegou a integrar uma escuderia e prestar assistência técnica em bólidos da Ferrari e Maseratti, além de participar de uma prova que marcou a inauguração de Brasília, em 1960.

Diante disso, afirmar que Scanferla é uma verdadeira lenda viva do automobilismo não soa como exagero. Natural de Padova, mas vivendo já há 53 anos no País na pacata cidade paulista de Águas de Santa Bárbara, o italiano de origem e brasileiro de coração relembra com orgulho e satisfação do tempo em que os carros eram - e ainda são, ao lado de sua esposa Vanda - sua maior paixão e razão de viver.

Sua história de amor com os automóveis começou quando ainda era criança e vivia na Itália, onde foi criado vendo seu pai e seu tio trabalharem como mecânicos, o que acabou lhe despertando o desejo de um dia ser um bom mecânico. Já no Brasil, onde chegou com 12 anos, em 1949, foi morar em São Paulo com seus tios e pais. Estes, quatro anos mais tarde, montaram uma cantina que atraía muitos fregueses italianos.

Entre as famílias que freqüentavam o local, as de Rugero Peruzzo e Emilio Zambello tornar-se-iam fundamentais para o futuro de Scanferla. Ambos eram donos de uma oficina mecânica, chamada “Garagem Fulgor”, especializada nas marcas Fiat, Alfa, Lancia, Maseratti e Ferrari.

“Fui convidado a trabalhar nela como aprendiz, varrendo o chão e lavando peças. Mas aos poucos fui aprendendo a fazer consertos e adquirindo um grande conhecimento. Me sentia realizado, pois todos eram veículos italianos”, enfatiza Scanferla.

Primeiras corridas

Scanferla nem sonhava que logo iria começar a freqüentar o mundo das corridas de automóvel em São Paulo e até em outros países, especialmente a Argentina. “Nunca imaginei isso, pois não sabia que elas existiam”, conta ele. “Mas os proprietários da oficina tinham um Fiat 500 Topolino com o qual corriam em Interlagos. Lá ia também um cliente nosso, Celso Lara Barberis, que disputava com um Simca. Quando soube disso, eu não mais as perdia para trabalhar como mecânico.”

Em 1954, o mesmo Celso compra uma Ferrari 3 mil cilindradas e, junto com Victorio Azolin e Godofredo Viana Filho, formam uma pequena escuderia, a Tubularte. “Eu os acompanhava e prestava ajuda em todas as provas que participavam, como Interlagos, Rio de Janeiro, Poços de Caldas, Piracicaba, Volta Redonda, Petrópolis e Niterói”, acrescenta Scanferla.

Mas foi em setembro de 1957 que o italiano participou de uma das provas que mais lhe marcou: os 500 Quilômetros de Interlagos, realizado no Dia da Independência, em que podiam participar carros esporte, desde que o motor não fosse original. Barbelis, então, dirigiu-se a um ferro velho e comprou um motor Corvette, que Scanferla adaptou na Ferrari adquirida anteriormente.

Faltando três dias para a corrida, o motor quebrou e obrigou a todos, inclusive o italiano, a trabalhar durante três dias ininterruptos para consertá-lo a tempo de efetuar a classificação. Como isso não foi possível, conta Scanferla, Barbelis largou em último lugar no grid, mas acabou ganhando a corrida. “Me senti vitorioso, pois todo o trabalho que tivemos foi recompensado com aquela vitória inesquecível.”

Despedida

A prova que marcou a inauguração de Brasília foi uma das últimas de Scanferla com a Tubularte, integrada também, entre outros, por Celso Lara Barbelis. Em 1961, o italiano deixa o time e começa a trabalhar em uma concessionária paulista, onde atuou durante 27 anos. E hoje, para lembrar dos bons tempos, produz artesanalmente artigos de madeira, como carros, motos e até bicicletas. “É uma forma de matar a saudade”, diz ele.