Modesto, ele não admitiria nunca, mas é verdade: José Alves de Mira - ou simplesmente Zé Mira - tem feito tanto sucesso na Festa Junina do Sesc quanto os cantores de renome que têm se apresentado no clube toda noite. O segredo, além de seu carisma natural, é o delicioso café tropeiro que só ele faz.
Com 78 anos, o mineiro de Cristina, atual morador de Jambeiro, na região de São José dos Campos, é figura raríssima. Lavrador, tropeiro, cantor, violeiro, pai de 12 filhos, suas histórias são tantas e tão ricas que até já renderam um livro. “Nas Trilhas de Zé Mira”, da jornalista Lídia Bernardes, publicado em 1999 pela Escrituras. Uma pequena enciclopédia do universo caipira, que ele defende com orgulho.
Pela primeira vez em Bauru, Mira foi trazido para a festa depois de ter feito sucesso com seu café no Sesc Taubaté e confessa que ficou surpreso com a receptividade do público bauruense. “Vou sentir falta daqui quando a festa acabar”, diz. Anteontem, enquanto preparava a primeira rodada de café na sua esculateira, ele concedeu uma entrevista ao JC Cultura. A seguir, os melhores trechos.
Jornal da Cidade - Como o senhor conheceu a receita do café tropeiro? Zé Mira - Conheci essa técnica com sete anos de idade. Meu pai fazia quando ia trabalhar na roça. A gente não levava café porque café requentado é muito ruim. Então a gente levava o pó e o açúcar e fazia o café no fogão de pedra dentro da toca onde a gente ficava. Para fazer a gente usava a esculateira.
JC - O que é a esculateira? Mira - É uma vasilha de cobre ou de bronze. Ela tem dois nomes: em São Paulo o pessoal fala chiculateira e o mineiro fala esculateira. Eu mantenho a língua do caipira mineiro.
JC - Mas como surgiu a técnica? Mira - Os tropeiros no começo faziam café usando coador. Mas aí as formigas juntavam no coador. Se você levantasse de madrugada para fazer café o coador tava cheio de formiga, nem lavando saía. Daí os tropeiros inventaram essa técnica de fazer café da brasa. Eu só continuo o que eles inventaram.
JC - Qualquer madeira pode ser usada para fazer o café? Mira - Não, só algumas funcionam: o jacaré, a goiabeira, a jaboticadeira, a sapuva e o guatambu. Elas são madeiras que não têm gosto e não têm cheiro. Já fiz o teste com outras madeiras mas nenhuma dá certo.
JC - O senhor conhece mais alguém que faça esse café? Mira - Hoje em dia é muito difícil. Há uns vinte anos até tinha, mas agora os filhos dos tropeiros que foram para a cidade têm vergonha de dizer que os pais faziam esse café sem coador, têm vergonha de dizer que são caipiras. Até porque muita gente não acredita que dá pra fazer café sem coador. Quem nunca viu fala que é mentira. Na minha região é assim, eles dizem: “Zé Mira, a minha vó fazia café tropeiro mas eu não falo que faço porque os outros dizem que é mentira”. Eles têm vergonha de ser caipira. Eu assumo o meu “caipirismo”. Sou um homem analfabeto, lavrador, tocador de enxada mesmo.
JC - Com 78 anos o senhor continua a trabalhar na terra? Mira - Eu tenho um sítio e ainda trabalho na roça. Eu que cuido do sítio e ainda tenho uma tropinha, só que hoje a minha tropa é de jegue.
JC - E já passou para alguém da família a técnica do café tropeiro? Mira - Tem dois filhos meus que fazem o café e agora tem um bisneto de oito anos que está começando a fazer. Ele tem uma grande paixão por mim e pelo o que eu faço, então está aprendendo a fazer o café, a tocar cavaquinho, a dançar moçambique, quer que eu ensine ele a dançar jongo, congada e cantar na Folia de Reis. Para mim é uma honra Deus ter me dado a oportunidade de ter força para trabalhar, para fazer as coisas que eu gosto.
JC - Só homens fazem esse café, não tem nenhuma mulher que use a técnica? Mira - Olha só conhecei uma mulher que sabia fazer, o nome dela é Maria Tropeira, de São Luís do Paraitinga. Ela tinha um monte de filho mas ela é quem governava a tropa. Está viva ainda.
JC - O seu café é melhor do que o café feito com filtro normal? Mira - Olha eu não sei, mas esse café tem um segredo. Eu tenho gastrite e não posso tomar café. Mas desse café eu tomo a noite inteira e não tenho dor. As pessoas também podem tomar que não vão ter problema nenhum para dormir depois. Agora o outro não é assim, eu não posso explicar porque existe essa mudança.
JC - O senhor tem feito muito sucesso com o seu café nesses dias de festa. Por que o senhor acha que as pessoas se interessam tanto? Mira - As pessoas ficam curiosas para saber como o café pode ser feito sem coador. Algumas até ficam na dúvida, depois tomam o café e não param mais. O pessoal está conhecendo uma coisa diferente e dando valor nisso. A quantia de café que a gente fez aqui nós nunca fizemos em Taubaté. Aqui está num ritmo muito bom, o pessoal está adorando. Eu fico muito feliz porque sempre digo: eu tenho que plantar alguma coisa porque não sou eterno. Eu estou indo embora, com 78 anos não espero mais nada, o que vier é lucro.
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Como fazer o café tropeiro
É muito provável que não se consiga um café com o mesmo sabor que o de Zé Mira em casa. Primeiro porque é preciso ter a madeira certa, depois porque as quantidades de cada ingrediente não são bem especificadas, já que Mira faz o seu café para a sua própria esculateira (aliás, o livro sobre Mira explica que a palavra vem de chocolateira e também existe na variante ciculateira).
Uma dica para quem quiser experimentar a técnica é começar tentando com as quantidades normais do dia-a-dia e daí, ir aumentando o diminuindo de acordo com o gosto pessoal. O café tropeiro de Zé Mira, por exemplo, é bem doce.
Para fazer o café coloque uma quantidade generosa de açúcar cristal em uma vasilha. Em seguida, ponha o pó de café. Jogue a água fervente e misture bem até que o açúcar não esteja mais grudado no fundo da vasilha. Na seqüência, pegue um pedaço da madeira em brasa - só pode ser jacaré, goiabeira, jaboticabeira, sapuva ou guatambu - e mergulhe sem dó no líquido. Daí vem o toque final: despeje um pouquinho de água fria no café e tampe a vasilha, deixando descansar por alguns minutos.
Depois, com uma peneirinha, retire o pó que ficou na parte de cima do café, que não deve ser muito, já que a maioria se acumula no fundo da vasilha. Aí é só servir e nem precisa se preocupar, o café fica delicioso e sem o mínimo vestígio de pó.
Segundo Mira, o segredo do café é o conjunto madeira na brasa e água fria em seguida. “Os tropeiros chamam essa água de gota milagrosa, porque é uma água virgem, que não foi fervida. A água fervida serve para beber, cozinhar, mas não serve para benzer ou para um batizado de criança. A água para pôr no café tem que ser virgem”, explica.