Volta de Martin Scorsese ao seu habitat de violência; retorno triunfal de Jack Nicholson aos papéis sérios após várias comédias; Leonardo DiCaprio e Matt Damon mostrando que vão além dos rostinhos bonitos... Os comentários sobre “Os Infiltrados” se repetem sem citar a maior razão para se ir até o cinema apreciar aquele que talvez seja o melhor filme policial da última década: a capacidade de surpreender dentro de um gênero tão popular e tão afeito a clichês.
Para nós, espectadores, que já absorvemos esses clichês (e todos os outros da dramaturgia em geral) com tanta intensidade, a sensação de incômodo no final da sessão é inevitável e é posta para fora em risos nervosos por uns ou em caras feias por outros. No ar, fica a pergunta: como ele fez isso comigo?
Sim, porque o roteiro de William Monaghan (baseado em “Conflitos Internos”, feito em Hong Kong em 2002) orquestrado por Scorsese, aparentemente normal para o gênero, se torna, a partir do terço final do longa, um desafio para o espectador, que, nesse momento, com os nervos à flor da pele (e com seu repertório cheio de clichês...) já escolheu seu “mocinho” favorito e que final ele imagina que a história deve ter. Parodiando o ótimo comercial de cartão de crédito: o queixo caído no final do filme não tem preço.
Para quem ainda não leu nada sobre o filme, “Os Infiltrados” (“The Departed”) se passa em Boston, onde Jack Nicholson é Frank Costello, o chefe de máfia irlandesa cuja quadrilha domina a região sul da cidade. Cruel e, por vezes, descontrolado, Costello é temido por todos e se torna o alvo número um da polícia local. O filme começa narrando como o chefão criou seu protegido, Colin Sullivan, interpretado por Matt Damon, para ser um policial e, assim, ter um homem dentro do QG inimigo. Ao mesmo tempo, uma divisão especial da polícia tem a mesma idéia e recruta o jovem Billy Costigan, Leo DiCaprio - talvez em seu melhor papel - para se infiltrar no bando de Costello.
Assim a ação começa com os dois personagens infiltrados se aprofundando no pior dos dois mundos, principalmente quando precisam, por uma questão de sobrevivência, descobrir um ao outro. Quem já assistiu “Os Bons Companheiros”, “Cassino” ou “Cabo do Medo” pode achar que não vai se assustar com a violência às vezes explícita de Scorsese, mas ele sempre se supera. A cena na qual o capanga de Costello (Ray Winstone) bate no braço já fraturado de DiCaprio enquanto pergunta se ele ainda trabalha para a polícia faz qualquer um se encolher na poltrona.
Mas a violência é só um meio de expressão. Conforme o clima de tensão aumenta, o que menos importa é o sangue. Isso até os 40 minutos finais, quando, cada vez mais perto de serem descobertos e se descobrirem, Sullivan e Costigan se vêem cercados de situações-limite.
Apesar da interpretação de Jack Nicholson ter sido muito badalada – ele não faz nada além de ser Jack Nicholson, magnífico, claro, mas Jack Nicholson - o filme é de Leonardo DiCaprio, que, longe de parecer o bom menino magricela de “Titanic”, dá credibilidade ao sofrimento e ao nervosismo de seu personagem. Matt Damon não fica atrás, mas seu papel não exige o mesmo nível de tensão. O resto do elenco é perfeito. Até mesmo atores que flertam com a canastrice como Alec Baldwin e Mark Wahlberg estão bem, especialmente o último, no papel de um policial provocador e desbocado.
A história tem lugares comuns, obviamente, como a única personagem feminina relevante, a psicóloga vivida por Vera Farmiga, que, quase sem querer, acaba convivendo com os dois infiltrados; as relações conflituosas dentro da polícia, com departamentos que competem entre si e não trocam informações; e, sobretudo, as cenas nas quais os personagens de DiCaprio e Damon são mostrados como “faces opostas do mesmo ser”. Aquela na qual Costigan vê Sullivan escapar através de uma série de espelhos e, de repente, se encontra olhando para o próprio reflexo é o melhor exemplo. O resultado final, porém, transforma tudo isso em detalhe, destruindo o nosso modo ver o filme policial e criando um outro, no qual não existem lugares, personagens e ações para nos agarrarmos e defendermos até o fim, sob qualquer circunstância. Isso incomoda, mas é bem mais próximo do real.