19 de dezembro de 2025
Articulistas

‘Papai Noel às avessas’


| Tempo de leitura: 3 min

Todos têm uma história de Natal para contar. A literatura está cheia de belos contos em prosa e verso sobre essa data cada vez mais marcada pelo consumismo. Na minha adolescência muito me marcou o conto de O. Henry (1862-1910) transformado em episódio de um filme de Hollywood. O conto se chama “O presente dos Magos”. Com rara sensibilidade o autor nos leva a refletir sobre a obrigação de dar ou retribuir presentes. Todos esperam ganhar e, com isso, o capitalismo segue a sua trajetória onde poucos lucram. E são esses poucos, os verdadeiros presenteados.

Conta O. Henry a história da jovem Della, que se sente obrigada a dar um presente para o marido, Jim. Ambos curtem a grande paixão de todo início de casamento. O cenário é Nova York em clima de recessão e miséria, nos bairros onde famílias imigrantes se amontoam. Nenhum dos dois tem dinheiro para comprar algo que dignifique o amado consorte. Jim tem um relógio de bolso, de ouro, herança da família, mas não pode usá-lo por falta da corrente que prenda a jóia com segurança, ao passador da calça. Della envaidece-se com seus cabelos castanhos, longos e sedosos, jamais cortados desde o nascimento. Chegava até aos joelhos, de tão compridos. Completamente fora de moda. Em tempos pragmáticos a velocidade é a arma para vencer competições, numa sociedade utilitarista governada pelas leis de mercado. Corta-se tudo em nome da tal objetividade que, em verdade, nada significa.

Della só conseguira juntar “um dólar e oitenta e sete centavos”. Quantia insignificante para um presente à altura do seu amor pelo marido. A moça vende os cabelos por vinte dólares e compra uma corrente chapeada de dourado para o relógio de Jim.

Na hora do reencontro em casa para comemorar o Natal, o marido leva um susto com a esposa de cabelo curto, mais apropriado a uma vedete de teatro de revista de terceira categoria. O “estrago” ainda seria tolerado não fora o fato de Jim ter comprado um belo pente de casco de tartaruga, cravejado de pedras brilhantes, justamente para prender as ricas melenas. O pente sempre fora o objeto de desejo da jovem mulher. Agora, se tornara um objeto inútil. Como usá-lo em cabelos tão curtos?

“Meus cabelos voltarão a crescer” – disse a esposa, ao mesmo tempo em que passava ao marido a corrente do relógio. A peça que faltava para, finalmente, completar o bem de família. “Della – disse Jim embaraçado com a situação - os presentes de Natal vão ter que esperar a vez de serem usados: eu vendi o relógio para ter o dinheiro que comprou o prendedor para os seus cabelos”.

Os Reis Magos viajaram milhares de quilômetros para adorar o Menino-Jesus na manjedoura. Em vez de “apagão aéreo” tiveram a estrela a guiar-lhes os passos. Levaram os presentes que podiam dar, sem nada esperar a não ser a salvação da humanidade. Desejo supremo que não se compra com dólares ou reais, pois depende do próprio arbítrio do homem. Políticos que se autopresenteiam não têm salvação. Cada parlamentar é o seu próprio e desavergonhado Papai Noel, com o dinheiro do povo. Para receber é preciso dar, mesmo que o ato de doação requeira sacrifícios, como no conto de O. Henry. Teríamos no nosso panorama político um “Papai Noel às avessas”, mas ainda assim distante da tocante narrativa poética de Carlos Drummond de Andrade, em “Alguma Poesia” (1930). O poeta subverte a característica do bom velhinho na figura de um gatuno. O Papai Noel faminto, depois de uma noite inteira de trabalho na porta da loja, resolve entrar numa casa pela porta dos fundos. Lembrem-se, no Brasil as casas não têm chaminés, como nos países frios. As crianças dormem um sono profundo. Barbas postiças despencando, botas enlameadas, Papai Noel rouba os brinquedos que enchem os sapatos das crianças. É a queda da integridade do mito. Votar em político, aqui no Brasil, é acreditar em Papai Noel transgressor. Uma ilusão com a qual nos decepcionamos na vida real.

O autor, Zarcillo Barbosa, é jornalista e colaborador do JC