20 de dezembro de 2025
Geral

Entrevista da semana: Ruth Alves de Souza Lopes

Adilson Camargo
| Tempo de leitura: 10 min

O escritor colombiano Gabriel García Márquez permaneceu isolado durante um ano e meio para escrever um dos maiores clássicos da literatura universal: “Cem anos de solidão”. Para a poetisa Ruth Alves de Souza Lopes, 78 anos, a solidão provocada pela morte repentina do marido, o médico e ex-prefeito de Agudos Manoel Lopes, foi algo muito doloroso. Mas foi também o que despertou nela a vocação para a poesia.

O silêncio apavorante das noites solitárias incomodava Ruth, a ponto de fazê-la amanhecer em claro. Sem conseguir dormir e como forma de extirpar dela a angústia pela perda do marido, Ruth se armou de papel e caneta para combater os espíritos indesejados da solidão e da insônia e passou a escrever poemas. Dessa luta nasceu o livro “Acalantos”, lançado em 1997.

Na entrevista concedida ao Jornal da Cidade, ela fala sobre o livro, sobre sua paixão pela literatura, sobre antigos e novos escritores, da experiência de ter sido primeira-dama em Agudos entre 1969 e 1972, época que o marido governou a cidade, e sobre uma realidade retratada em um de seus poemas e que continua muito atual, a dos meninos de rua.

Jornal da Cidade – Como surgiu essa paixão pela literatura, mais especificamente a poesia?

Ruth Alves de Souza Lopes – Desde criança, eu sempre li muito. Meu pai era um bom leitor e ele passou esse hábito para os filhos. Quando não estou ocupada com alguma coisa, eu vou ler. Eu li um provérbio uma vez que diz: ‘quem escreve um livro constrói um castelo e quem lê torna-se habitante desse castelo’. Sem cerimônia, eu devo viver há muito tempo nesses castelos e também devo estar construindo um, bem pequeno, por aí.

JC – O hábito de ler surgiu então na senhora desde a infância?

Ruth – Na infância, eu li toda a coleção de Monteiro Lobato. Sempre fui bem orientada pelo meu pai. Depois, continuei lendo sempre.

JC – E o hábito de escrever, de não ficar apenas na leitura, mas produzir seus próprios textos, suas próprias poesias, surgiu como?

Ruth – No colégio, os professores sempre gostaram das minhas redações. Uma vez um professor de religião, que também era padre e advogado, chegou para mim e disse que ele quase ficou convencido que Judas (personagem bíblico, que traiu Jesus) não foi para o inferno de tão bem escrita que estava a minha redação. No texto, eu defendia essa tese. Ele só não me deu nota dez porque ele não podia se convencer disso (risos).

JC – Então, a senhora sempre foi uma boa escritora?

Ruth – Eu sempre gostei de escrever. Até mesmo cartas para os parentes, para os filhos. Eu escrevo longas cartas.

JC – A senhora tem idéia de quantos livros já leu?

Ruth – Ah, é difícil, hein. Li muitos, não tenho idéia de quantos.

JC – E o que a senhora gosta de ler?

Ruth – Atualmente, tenho lido de tudo. Eu não me prendo somente a autores antigos, consagrados. Mas nos modernos também. Li o livro “Casório” recentemente (de Marian Keyes) e gostei bastante da linguagem e dos conceitos que a escritora usa. Ela fala do casamento de uma forma que eu nunca havia visto antes e acho que muitas pessoas também não. Eu não fiquei presa somente às coisas antigas, eu procuro também me atualizar.

JC – E qual a opinião da senhora sobre esses escritores modernos?

Ruth – Eu acho que tem muita coisa boa surgindo. Eu li também ‘O Caçador de Pipas’ (de Khaled Hosseini) e achei maravilhoso. Fui até assistir ao filme. O mesmo autor tem também um outro livro muito bom (A Cidade do Sol). Então, eu acho que nós tivemos bons escritores antigamente, mas não deixa de aparecer outros tão bons quanto aqueles agora.

JC – E a senhora se mantém informada sobre esses novos escritores de que forma? Qual sua principal fonte de informação e orientação?

Ruth – Estou sempre acompanhando a lista dos livros mais vendidos, seja nos jornais ou nas revistas, e também assisto na TV matérias sobre lançamentos, leio críticas. Acompanho desta forma.

JC – A senhora disse que aprendeu a gostar de literatura dentro de casa, com o pai. Como mãe, a senhora conseguiu fazer o mesmo pelos seus filhos, ou seja, conseguiu criar neles o hábito da leitura?

Ruth – Consegui. Todos eles lêem. Uns mais, outros menos, mas todos têm o costume de ler. Apesar dos dez filhos, eu sentava com eles e lia desde a Bíblia até os livros próprios para a idade deles. Hoje, todos, com exceção talvez de um ou dois filhos que não ligam muito para leitura, mas em geral todos gostam muito de ler e escrevem muito bem também.

JC – Porque uma coisa está ligada à outra. Quem lê bastante, normalmente escreve bem.

Ruth – Eu sempre falo isso. As crianças têm de ler bastante para desenvolver o vocabulário. E a família tem um papel fundamental nisso. A escola sozinha não consegue criar o hábito. Os pais precisam ajudar.

JC – Sobre o livro de poesias ‘Acalantos’, escrito pela senhora, como foi que ele surgiu?

Ruth – Quando meu marido morreu, apesar de eu ter muitos filhos, eu senti muita solidão. Nós éramos um casal de mãos dadas. Estávamos sempre juntos, sempre conversando. Nós nos amávamos e nos respeitávamos. E ele morreu de repente. Teve um câncer, ficou dois meses sem trabalhar, na cama e logo morreu. Para nós, foi um baque muito grande. Não contávamos com isso. Foi uma solidão muito forte. Eu sentia falta de conversar, de sair de mãos dadas, da cumplicidade. Isso foi passando para a escrita. Durante o dia, eu sempre tinha os meus filhos do meu lado, as visitas. O povo de Agudos gosta de visitar. Mas chegava de noite, eu estava sozinha no meu quarto com a minha solidão, com as minhas noites de insônia. Aí eu comecei a escrever. Foi depois que ele morreu que eu fiz o “Acalantos”.

JC – E quando foi que a senhora decidiu lançar o livro?

Ruth – Quando a gente vai escrevendo, você vai gostando, mas não sabe se os outros vão gostar. Então, você mostra o que escreveu para ver a reação das pessoas. Mas a gente mostra meio que pedindo desculpas, bem acanhadamente. E a reação foi positiva. Uns e outros me falavam para escrever um livro e eu comecei a pensar nessa possibilidade. Eu fui ousando. Até o livro virar realidade.

JC – E do que trata o livro “Acalantos”?

Ruth – Trata dos meus sentimentos, de reproduzir em prosa o próprio tema dos meus poemas, pois são as minhas verdades e verdade é uma só. Depois que fiquei viúva, assumi minha vida com alegria e coragem. Daí vieram os versos que foram a síntese do ‘Acalantos’.

JC – E qual a mensagem que a senhora procurou passar por meio desses versos?

Ruth – Uma mensagem de força, de fé na vida, de coragem na luta, de esperança. É um livro para a vida e para os que amam.

JC – Falando um pouco de política, agora, nos conte como é que foi ter um marido prefeito. Como isso aconteceu, já que ele não era político e nunca havia ocupado um cargo público antes?

Ruth – Quando meu marido foi lançado candidato a prefeito de Agudos, eu não concordei porque achava que meu marido estava bem resolvido profissionalmente. Então, não havia necessidade de arrumar outra coisa para fazer. Para quê ele iria deixar uma coisa que amava, que era a medicina, para se aventurar na política? Ele nunca havia sido político. Mas um dia o Sérvio Coube me fez pensar se eu não estava contrariando uma vocação do meu marido. Sentei para conversar com meu marido a respeito e percebi que eu estava sendo muito severa mesmo. Foi aí que eu vi que o Sérvio tinha razão. Meu marido venceu a eleição por uma diferença de 33 votos.

JC – E o que a senhora achou da experiência de ser primeira-dama?

Ruth – Eu achei ótimo. Gostei da experiência porque eu tinha certeza que as coisas estavam sendo bem encaminhadas. Meu marido não resolvia nada de supetão. Ele gostava de ter liberdade para pensar e agir. Sofreu pressão, como qualquer outro prefeito, mas sempre trabalhou com muita honestidade.

JC – Assim como em outras cidades pequenas, imagino que em Agudos, naquela época, era bastante comum as pessoas procurarem o prefeito na casa dele para pedir alguma coisa. O que a senhora achava de tudo isso?

Ruth – Era muito comum as pessoas baterem na porta de casa para pedir coisas, mas meu marido sempre foi direto. Às vezes, eu falava para ele ‘Manoel, demora um pouquinho para responder. Dá um tempo’. Mas ele não aceitava. Ele queria decidir na hora. Ele não gostava de alimentar esperanças se a resposta no fim seria ‘não’.

JC – Falando em crianças, tem um verso do livro “Acalantos” chamado “Menino de rua...” (leia ao lado) em que a senhora trata do desamparo na infância e das conseqüências que isso traz para a vida de uma pessoa. Apesar de ter sido escrito há muitos anos, é um poema ainda muito atual, a senhora não acha?

Ruth – Infelizmente. Acredito que tudo isso que está dando errado no mundo é a falta de assistência dos pais aos filhos. Sempre essas crianças que são problemas, em geral são filhos que não são bem criados. Escrevi o poema há muitos anos e a realidade não melhorou, ao contrário, piorou. Ainda hoje vemos o abandono dos filhos pelos pais. Muitos não acompanham a vida escolar dos filhos, não querem saber de suas atitudes, não têm a preocupação de passar para os filhos valores morais. Se a gente não trata desses meninos hoje, daqui há alguns anos no que eles vão se transformar, com essa falta de valores e de estudo?

JC – Então, o problema está na desestruturação das famílias?

Ruth – E também na falta de modelos vivos que sirvam de espelhos para os jovens. Eles não têm exemplos para seguir, para se espelhar.

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Perfil

Nome: Ruth Alves de Souza Lopes

Idade: 78 anos

Local de nascimento: Agudos

Marido: Manoel Lopes

Filhos: Eliane, Manoel, Roseli, Carlos Alberto, Mirian, Helen, Márcio, Luciene, Manoel Júnior e Isabela

Hobby: “Ler e escrever”

Livro de cabeceira: “São Lucas Médico” e “Cem Anos de Solidão”

Filme preferido: Vários

Estilo musical predileto: MPB e música clássica

Para quem dá nota 10: “Para Ruth Cardoso, pela dignidade, cultura, trabalho e simplicidade.”

Para quem dá nota 0: “Para a violência e para os erros dos policiais que matam inocentes.”

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“Menino de rua...”

Peito aberto, o menino desvalido levou um tiro... Não foi no coração, foi só de raspão...

Mas, no coração, o menino já havia sofrido toda traição, do mundo que cobra e nada oferece...

Da gente que passa e não vê a desgraça, o abandono de um “ser”.

Ser o menino da rua, do estilingue, da vidraça, o menino que assalta...

Assalta a fome que o mata, a fome que o maltrata... Ou, que não o mata mas, maltrata...

Não é a fome de pão...

É a fome de braços, de laços, de abraços a aquecer seu coração...

É a fome do anseio... A angústia do sentir-se tão só...

Num mundo cheio de gente, gente que passa e não vê e não sente, o carente a pedir um carinho...

A esmolar, um sorriso, um olhar, um afago de gente que o faça ser gente pra sorrir, sonhar, amar! Ser um ser, pra viver!

Autora: Ruth Alves de Souza Lopes