22 de dezembro de 2025
Geral

Cemitério, a última morada do ‘belo’

Rodrigo Ferrari
| Tempo de leitura: 4 min

Em Bauru e nas cidades vizinhas, a casa derradeira daqueles que deixaram esta vida também se converteu, há um bom tempo, na última morada da arte com “A” maiúsculo. Na falta de museus e salas de exposição para abrigar os trabalhos de nossos artistas, os cemitérios da região vêm funcionando como redomas de vidro onde o belo ainda tem condições de respirar.

“Na região de Bauru, os cemitérios estão entre os poucos espaços públicos onde as pessoas têm condições de respirar arte”, afirma o escultor bauruense José dos Santos Laranjeira, professor da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação (Faac) da Universidade Estadual Paulista (Unesp).

A reportagem do Jornal da Cidade percorreu as necrópoles (do grego, “cidade dos mortos”) de Bocaina e de Jaú, além, é claro, o Cemitério (do latim tardio coemeterium, derivado do grego, kimitírion, o mesmo que “pôr a jazer” ou “fazer deitar”) da Saudade, em Bauru, à procura da arte que persiste depois da morte. Nesta página e na seguinte, o leitor terá condições de conhecer melhor algumas dessas obras que, ao mesmo tempo, fascinam e chocam.

Com túmulos que datam do início do século passado, o cemitério de Bocaina preserva traços da cultura que os imigrantes trouxeram para a região. Releituras das catedrais góticas medievais, as sepulturas existentes no local parecem querer alcançar o céu.

Estátuas de bronze e de mármore carrara são comuns nas criptas dos imigrantes - os italianos, em especial. Tentam reproduzir a dor daqueles que ficaram e a beleza das vidas que se foram. Sinais de morte e vida, luta desesperada do efêmero para se perpetuar no tempo e no espaço - assim poderia ser definida a arte dos cemitérios.

“Na virada do século 19 para o 20, as peças costumavam ser feitas em bronze ou pedra, que são materiais que se perpetuam pelos séculos”, salienta Laranjeira. No Cemitério de Jaú, essa busca pelo eterno se torna mais evidente, principalmente na parte antiga da necrópole, ocupada, em sua maior parte, pelos clãs da aristocracia cafeeira.

“Em relação à técnica, a arte tumular segue a tradição da arte em geral. Quanto ao conteúdo, ela é pautada pela esperança na ressurreição. É uma forma de representação de contextos históricos, ideológicos, religiosos e sociais, onde a morte se torna um grande espetáculo da vida, podendo significar amor, tristeza, saudade, arrependimento, dando sentido aos restos mortais preservados no cemitério”, afirma a artista plástica Janira Fainer Bastos, professora do Instituto de Ensino Superior de Bauru (Iesb).

Significados surgidos no decorrer do tempo que nem sempre correspondem aos fatos. Na parte antiga do Cemitério de Jaú, um jazigo chama a atenção pela suntuosidade com que foi construído. Entre os adornos do túmulo estão a estátua de uma mulher, feita em mármore. Uma expressão triste no rosto, cabeça e braços tombados sobre o mausoléu, como se ali repousasse uma pessoa amada. Nas mãos, um ramalhete de flores; ao fundo, um painel de bronze mostra um jovem sendo carregado por dois seres alados.

O mausoléu – termo surgido em alusão à sepultura que Artemisa, viúva de Mausolo, rei da Cária (antigo país da Ásia Menor) mandou construir em homenagem ao marido - recebeu dos jauenses o sugestivo nome de “Túmulo da Noiva”.

“Segundo contam, naquela sepultura estaria enterrada uma moça que cometeu suicídio no dia em que iria se casar, após ser abandonada no altar pelo amado. Na verdade, isso não passa de uma escultura, como outra qualquer. As pessoas criaram uma lenda a partir da cena retratada pela obra”, explica o professor de história Júlio César Polli, que pesquisa a arte cemiterial há cerca de dois anos.

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Reprodutibilidade

Um dos fatores que ajudaram a precipitar a decadência da arte cemiterial foi o excesso de cópias dos trabalhos que enfeitam os túmulos. As pessoas colocavam no jazigo de um ente querido uma imagem que parecia única e original.

Acabavam atraindo a admiração daqueles que visitavam o cemitério, é bem verdade. Algum tempo depois, todavia, clones daquela obra “exclusiva” podiam ser vistos em inúmeros túmulos espalhados pela necrópole.

No Cemitério da Saudade, o mais antigo de Bauru, por exemplo, é possível encontrar dezenas de imagens de bronze de Jesus em tamanho natural, sentado, um tanto cabisbaixo, como se estivesse refletindo sobre o destino incerto do universo.

“O excesso de reproduções acabou prejudicando o valor artístico das obras dos cemitérios. Como diria Walter Benjamin (filósofo alemão, de orientação marxista, que viveu entre os anos de 1892 e 1940), a reprodutibilidade retirou a áurea dessas obras de arte”, pondera o escultor bauruense José dos Santos Laranjeira, professor da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação (Faac) da Universidade Estadual Paulista (Unesp).