18 de dezembro de 2025
Geral

Fiscais localizam abrigo subumano

Vitor Oshiro e Mariana Cerigatto
| Tempo de leitura: 7 min

Pratos de comida espalhados, beliches feitas pelos próprios moradores, um cano usado como chuveiro, colchões mofados sobre o chão, fogão ao lado de camas, vidraças quebradas e superlotação. Foi nesse palco desumano em plena zona sul de Bauru que fiscais do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) localizaram um alojamento com mais de 20 trabalhadores da construção civil que vieram do Maranhão há quatro meses para trabalhar na cidade. Segundo os operários, eles foram contratados e trazidos a Bauru pela empreiteira C.F. Camargo & P.F. Ltda., terceirizada da construtora MRV.

Descoberto ontem, o alojamento está localizado na esquina da rua Gustavo Maciel com a Rafael Mercadante e abrigava gesseiros de construções que fazem parte do programa federal "Minha Casa, Minha Vida". A degradação do local contrasta com a nobreza da área, que é uma das mais valorizadas da cidade.

O prédio, denominado Edifício Lisboa, já apresenta toda a precariedade logo na fachada, que tem várias vidraças quebradas e a estrutura claramente deteriorada. Dentro, a situação somente piora. A sala foi transformada em quarto com uma beliche, que, assim como todas as outras do alojamento, foram feitas pelos próprios gesseiros com madeiras "trazidas pelos empregadores".

O número de pregos soltos e parafusos desses leitos improvisados é assustador e perigoso. Sem sustentação, os moradores afirmam que já houve acidentes com a quebra dos beliches. Na ausência de armários, diversos barbantes foram instalados para estender as roupas.

Nos outros dois quartos, a situação de degradação é semelhante. Em um deles, os colchões mofados e o sofá ficam bem ao lado do fogão. Na minúscula cozinha, que também serve para um dos gesseiros dormir, há uma pia cheia de pratos com restos de comida.

Com a chegada do frio, as várias vidraças quebradas começaram a preocupar. Um dos moradores mostra um isopor que foi colocado para suprir a ausência desse vidro e evitar a entrada do vento.

Na tarde de ontem, a imprensa e os fiscais dividiam os pequenos espaços. Se a situação vivida já parece sufocante em poucos minutos, os gesseiros, que vivem no local há quatro meses, dizem-se desesperados. "Chegamos aqui no dia 11 de janeiro. Viemos com a promessa de que iríamos ficar em um apartamento no Centro. Nunca imaginávamos viver assim. É um pesadelo", conta Manoel de Jesus Moura, 25 anos.

Pesadelo que se intensifica ao entrar no único banheiro do local. Além do forte odor, não existia sequer um chuveiro. Os moradores usavam um cano que sai da parede para se banhar. A falta de condições de higiene simboliza perfeitamente o estado subumano em que se encontravam.

Na parte de cima haveria outro alojamento, porém, as portas estavam trancadas, uma vez que os operários provavelmente estavam trabalhando nos canteiros. Segundo o gerente regional do órgão, José Eduardo Rubo, juntando os dois andares, cerca de 28 trabalhadores vivem nessas condições.


Responsabilidade de quem?


Enquanto o local era fiscalizado, duas técnicas de segurança da MRV chegaram. Segundo o que elas alegaram aos fiscais, a empreiteira C.F. Camargo & P.F. Ltda., responsável pela contratação dos gesseiros, teve o contrato rescindido e não presta mais serviços à MRV. Os trabalhadores contestaram essa versão.

Em relação à empreiteira, a contadora da empresa também foi até o alojamento e negou que o contrato tivesse sido desfeito. De lá, ela acompanhou os fiscais, representantes do Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias da Construção e do Mobiliário de Bauru e o promotor do Trabalho Marcus Vinícius Gonçalves, que também acompanharam o caso, para uma reunião entre os donos da empreiteira e funcionários da MRV no canteiro de obras no Jardim Contorno.

No local, a construtora não permitiu a entrada da reportagem. No início da noite, o promotor do Trabalho revelou que a MRV providenciou ainda ontem a transferência de cinco desses gesseiros para um hotel na cidade. Entretanto, a empresa alegou que os outros operários trabalham para outras construtoras.

"Faremos uma audiência para apurar todas essas informações. Vimos hoje que a construtora sinaliza essa responsabilidade. Com essa audiência, iremos firmar o fato. Também vamos apurar se os outros trabalhadores são realmente de outras construtoras", completa o promotor Marcus Vinícius Gonçalves.

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?600 normas desrespeitadas?


Até para os fiscais do MTE, o estado do alojamento é impressionante. Segundo o gerente regional do órgão, José Eduardo Rubo, ver um fato assim na cidade é algo assustador. "Na área urbana de Bauru, essa é a primeira vez que vejo algo parecido. As condições realmente são subumanas. A lei impõe cerca de 600 normas a serem cumpridas. Esse lugar não respeita nenhuma delas".

De acordo com Rubo, será feito o "resgate" desses operários. "Eles serão resgatados e levados de volta ao Maranhão. Os responsáveis precisarão pagar as verbas rescisórias e todos os outros custos. Também serão responsáveis pela viagem de volta. Em último caso, o próprio Ministério do Trabalho providenciará o retorno deles", explica.

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Aliciamento e escravidão


De acordo com o promotor do Trabalho Marcus Vinícius Gonçalves, caso comprovada a responsabilidade, tanto a empreiteira quanto a construtora podem responder por dois crimes. "Elas podem ser acionadas por trabalho escravo, cuja reclusão é de 2 a 8 anos, e por aliciamento, cuja pena é de 1 a 3 anos", informa.

O promotor explica que, pelo que foi apurado, os trabalhadores vieram sob falsas promessas, sem exames médicos e guia obrigatória do Ministério do Trabalho. "Também será instaurado inquérito civil para apurar os fatos. O Ministério Público irá pedir indenização a esses trabalhadores por danos morais", completa Marcus Vinícius Gonçalves.

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?Deixei três filhos para cair neste pesadelo?


"Fé em Deus". Era essa a mensagem deixada por um dos gesseiros em uma parede do alojamento. Essas citações, fotos e até pôsteres de atrizes eram os símbolos mais humanizados daquele local descrito de forma unânime por todos: "um pesadelo".

"Eu deixei três filhos em São Luís, no Maranhão, para tentar uma vida melhor e parei aqui. Fizeram um monte de promessas, mas acabamos neste pesadelo. Não consegui ajudar em nada minha família que ficou lá (no Maranhão)", conta o gesseiro Carlos Magno de Almeida, 27 anos.

Além das condições sub-humanas, eles reclamam ainda dos salários atrasados. Segundo Francinaldo Silva dos Santos, 23, "não tinha dinheiro para nada. A promessa é que conseguiríamos ?tirar? até R$ 2 mil. Há dois meses, não recebemos nada".

A rotina era dura. Eles saíam do alojamento cerca das 6h30 da manhã e iam para o canteiro de obras. Lá, ficavam até as 18h. "No começo, levávamos marmita. Depois, ficou uma mulher aqui. Ela fazia almoço e janta. Era a única coisa que comíamos, pois não tínhamos mais dinheiro", conta Manoel de Jesus Moura, 25.

Depois do dia de trabalho, voltavam para "descansar" no alojamento. "Só sai água fria desse cano. Como você pode ver, o papel higiênico é jornal. As promessas e as esperanças de que iríamos receber nos faziam continuar, mas vimos que isso nunca iria mudar", completa Manoel.

Diante desse quadro, a notícia de que iriam voltar para o Maranhão foi muito bem recebida. Entretanto, a imagem que vão levar de Bauru está longe de um local de oportunidades. "Damos graças a Deus de poder voltar ao Maranhão. Viemos nos aventurar e acabamos nessas condições. Não dá para viver aqui com saudade da família e morando pior que bicho", desabafa Carlos Almeida.

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Canteiro de obra também é alvo de fiscalização


A localização do alojamento fez parte de uma operação de fiscalização, integrante a uma ação programada do MTE em todo o Estado. Ainda ontem, foi encontrado um canteiro de obras da MRV no Jardim Redentor, que pode ser interditado.

"Encontramos irregularidades referentes à segurança do trabalho. Algumas delas podem ser passíveis de interdição, mas nós vamos analisar e num segundo momento decidir se vamos interditar ou não", informou o gerente regional José Eduardo Rubo. "Se houver mesmo interdição, a empresa será notificada para que sejam regularizados os itens necessários. Normatizada a situação, a intenção é liberar o trabalho na empresa", acrescenta.

Na fiscalização, foram constatadas irregularidades nos elevadores de materiais e os andaimes também estavam sem proteção adequada. A assessoria de imprensa da empresa informou que o elevador será adequado até amanhã e que todas as adequações dos itens de segurança solicitadas já foram solucionadas.