Certas coisas parecem feitas não para serem usadas, mas, sim, possuídas. Privada de mármore é uma delas (vi em uma propaganda). Você manda instalar isso em sua casa para que os outros usem e falem: "-Nossa! A casa tem até privada de mármore!"
Ter um banheiro com privada de mármore é um modo de se ver tão exclusivo, tão aristocrata, que até os dejetos são valorosos. É como dizer: "-Até o meu cocô é nobre."
Uma pessoa que compra uma privada de mármore deve se sentir na posição diametralmente oposta ao tomate do filme "Ilha das Flores". O tomate que foi parar no lixo.
Basicamente, o filme "Ilha das Flores" - premiadíssimo documentário nacional - mostra como, em nossa sociedade, um ser humano pode estar atrás de um porco na escala de valores aceita pela grande maioria das pessoas. Basta não ter dinheiro. E nem dono.
Uma vez o Arnaldo Jabor escreveu um ensaio sobre os funerais de Lady Diane e mencionou os cavalos da carruagem que defecaram durante o cortejo, estragando toda aquela pompa e a assepsia do ritual. Os cavalos atrapalharam o mito que estava sendo construído. O cocô invadiu todas as pretensões dos aristocratas.
Minha avó me contava uma história que faz muito sentido. Ela dizia que, quando Dom Pedro I parou no riacho do Ipiranga, no dia 7 de Setembro, não tinha nenhum mensageiro de Dom João entregando carta alguma. Na verdade, segundo ela, Dom Pedro teve uma baita dor de barriga e a caravana teria parado em uma casinha que existia ali, para ele ir ao banheiro (mas sem privada de mármore, eu acho). Depois, decidiu proclamar a independência.
É muita ingenuidade acreditar que o Brasil colonial iria se libertar de sua metrópole com uma independência declarada pelo filho do rei de Portugal. Eles combinaram isso. É óbvio! Tanto é verdade, que depois o Dom Pedro deixou o filho aqui e foi ser coroado Dom Pedro IV, rei de Portugal.
Voltando ao tema de "Ilha das Flores", um dos meus alunos postou no Facebook a foto de mendigos dormindo na rua, em Bauru, no dia mais frio dos últimos tempos.
E escreveu que, enquanto aquelas pessoas estavam naquela situação, ele só precisava pegar mais um cobertor para se aquecer dentro de sua casa.
No momento em que via o Facebook, eu estava na casa de uma amiga. Acontecia um bazar de roupas femininas e a casa estava lotada de mulheres comprando, comprando e comprando.
Uma delas me disse que vivia endividada, mas comprara "tudo aquilo ali", e apontou para uma pilha de roupas sobre uma cadeira. Um minuto depois, "pesquei" três mulheres combinando um outro bazar para que elas pudessem trocar mutuamente as roupas que abarrotavam seus armários e não seriam mais utilizadas.
"-Eu tenho roupas que usei duas vezes, mas não usarei mais", disse alguém.
Fui para casa lembrando da aula que havia dado no dia anterior, sobre a "Era de Ouro" do capitalismo, que começou depois da Segunda Guerra Mundial e terminou com a Crise do Petróleo, em 1973. Durante 28 anos, nossa sociedade foi moldada pelo estilo de vida norte-americano.
Muito do que somos hoje é resultado do conforto material e da ideia de felicidade que as novidades industriais colocaram no mercado a preços acessíveis para a classe média. É impossível, em uma primeira análise, imaginar que o mundo ficou pior desse modo, pois o conforto material é benéfico (é claro). O problema está no exagero.
Nossa tragédia é resultado de uma sociedade que se fundamenta no acúmulo incessante de bens. O mundo onde a escala de importância das pessoas é determinada pela posse material já existia na Antiguidade, na Idade Média, na Idade Moderna - por todos os cantos da Terra -, mas era uma exclusividade da elite. Agora a "vitória" material foi imposta a todas as classes. E aqueles que desdenham da regra são vistos como perdedores.
A compulsão por comprar impede que vejamos a verdade: não estamos adquirindo um bem e sim um conceito (o novo, o exclusivo). Uma privada de mármore, usada como instrumento publicitário, é a prova mais cabal disso.
O autor, Luís Paulo Domingues, é professor de história e colaborador de Opinião