20 de dezembro de 2025
Articulistas

O papa negro

Zarcillo Barbosa
| Tempo de leitura: 4 min

A grande novidade na eleição do novo papa foi a escolha de um jesuíta para liderar a Igreja, antes mesmo do fato de ser argentino. Mário Jorge Bergoglio, agora Francisco, ocupou cargos importantes na Companhia de Jesus, ordem religiosa na qual os seus membros fazem votos de não aspirar a nenhuma dignidade eclesiástica e a resistir a nomeações. O princípio foi ditado pelo próprio fundador da Ordem, Santo Inácio de Loyola, em 1534. Passaram-se 579 anos e, pela primeira vez um membro da instituição religiosa ascende ao papado. Entre os votos característicos dos jesuítas, tanto figuram os habituais das ordens religiosas ? obediência, pobreza e castidade ? como um quarto, específico, que concerne à obediência ao papa. Talvez aí resida a explicação para o paradoxo: o fator endógeno, ou seja, originário do próprio sistema.

O superior-geral dos jesuítas é chamado de "Papa Negro" por causa da batina preta e por exercer uma liderança forte. Os membros da ordem jamais usam o branco para que ninguém tenha dúvidas sobre a determinação de estarem no mesmo nível dos pobres, assim como fizeram os santos mais ilustres da Companhia, Francisco Xavier e Francisco de Borja. D. Cláudio Hummes escolheu bem, Francisco, para a carreira do seu amigo no trono de São Pedro. A alusão direta é a São Francisco de Assis, "Il poverello" (o pobrezinho) como o chamam na Itália. Tanta humildade talvez não seja o caminho para reformar as estruturas do governo central da Igreja. A hierarquia católica nem espera uma mudança radical no que diz respeito a um passado recente. Mas dentro do tradicionalismo imperante há espaço de sobra para trazer a Igreja Católica de volta à sua posição de protagonista, perdida depois do Concílio Vaticano II, quando não se deu conta da sua preocupação terrena de solidariedade aos injustiçados.

Quando jovem jornalista, fui designado para cobrir a visita do papa Paulo VI à Colômbia, em 1968. Repórteres de toda a mídia mundial noticiavam sobre o acontecimento e, diante das negativas do papa à uma entrevista, contrária ao protocolo do Vaticano, as atenções se voltaram para o "Papa Negro". Era o basco Pedro Arrupe, superior da Companhia de Jesus no mundo, conhecido pelas suas fortes convicções quanto ao avanço da Igreja, principalmente na América Latina dominada por ditaduras militares. Falava abertamente sobre o martírio do padre colombiano Camilo Torres, morto em combate na guerrilha, em 1966. Arrupe havia rezado junto ao túmulo do Marquês de Pombal, em Lisboa, justamente o responsável pela expulsão dos jesuítas de Portugal e das colônias, incluindo-se a do Brasil. Estava em Hiroxima quando a bomba atômica explodiu. Transformou a capela provincial em hospital e salvou muitos feridos operando com tesoura e faca . O "caput nigrum" insistia que "a pobreza é desumana" e a opção tinha que ser pelos pobres. Ele dizia que era preciso ter pressa. Reconhecia que, "se Deus trabalha em longo prazo é porque nosso horizonte é muito pequeno". Agora, um papa reformador é a esperança do catolicismo. Mas, só a vontade do papa não é bastante. Cardeais, bispos, padres, enfim, o povo de Deus têm que se abrir a uma reforma interna e externa. Num novo milênio, no contexto de um mundo globalizado e muito mais complexo do que aquele dos anos sessenta (Vaticano II) o "aggiornamento" é ainda mais necessário. Disso depende o futuro da Igreja nesta primeira metade do século XXI. Francisco já sentiu que a sua missão vai ser difícil. O Espírito Santo perdoa os que elegem. Deus inspira toda a Igreja, mas não anula a liberdade, interesses e ações dos agentes humanos.

Começam agora a desenterrar a possível omissão de Bergoglio diante dos horrores da ditadura militar na Argentina. Aconteceu o mesmo com relação a Pio XII, acusado de não agir contra o nazi-fascismo, principalmente no Holocausto. Lembro-me de d. Cândido Padin, bispo de Bauru, que sempre lutou pela redemocratização do país envolto também numa ditadura militar. Quando o jornalista Waldmir Herzog foi torturado e morto no Doi-Codi, do II Exército em São Paulo, como presidente da regional sindical em Bauru, tive que recorrer a ele para que fosse rezada missa de 7° dia para o colega morto sob tortura, embora fosse judeu. D. Cândido, aqui, e d. Evaristo Arns, em São Paulo foram os únicos. O evento foi gravado e fotografado pela polícia (Dops). Distribui cópias da bela homilia de d. Cândido, pela liberdade de expressão e pelo respeito aos direitos humanos. O único jornal que publicou foi o "Estado de S. Paulo", já em guerra aberta contra a ditadura. Quem sabe um, dia, a chegada de Bergoglio possa ser chamada de "providencial". A primeira proeza, a cromática, ele já conseguiu: o negro se converteu em branco.

O autor, Zarcillo Barbosa, é jornalista e articulista do JC