22 de novembro de 2024
Articulistas

Tolerante Cupido

Lucius de Mello
| Tempo de leitura: 3 min

Impossível não lembrar de Mario Prata ao ler a reportagem da revista Época dessa semana: "O prefeito da tolerância". Ao terminar a leitura, pensei: taí uma boa ideia para uma versão pós-moderna da novela Estúpido Cupido! Eu explico: o escritor e jornalista brasileiro Mario Prata nasceu em Uberaba, Minas Gerais, mas foi criado na cidade de Lins. Lá ficou carinhosamente conhecido como Pratinha e começou sua carreira literária. O amor de Pratinha pela cidade é tamanho que ele até se inspirou em Lins para criar a fictícia Albuquerque ? onde se passava toda a trama da novela Estúpido Cupido ? exibida na Rede Globo entre 25 de agosto de 1976 a 28 de fevereiro de 1977.

A história se passava nos anos sessenta. Tempo da brilhantina, das lambretas e do rock and roll. Os 160 capítulos fizeram o país parar, às sete da noite, para acompanhar, pela televisão, o drama das personagens, na grande maioria inspiradas em parentes, moradores, cidadãos linenses que Prata conheceu na juventude e, especialmente, nos amigos do autor, como o advogado Sérgio Antunes Filho. O nome fictício Albuquerque, no passado, já fez parte do nome de Lins. Fatos reais daquele tempo aparecem nitidamente na trama, como um concurso de Miss que agitou a cidade em 1969 e o sonho do petróleo, a escavação de um poço da Petrobrás em 1958. Os linenses com mais de 50 anos, com certeza, se lembram ou já ouviram falar de situações reais narradas em Estúpido Cupido.

Dirigida por Régis Cardoso, a novela foi um grande sucesso. A trama era recheada de temas polêmicos. Retratava a luta dos jovens por mais liberdade na maneira de se vestir, se expressar, na maneira de amar. O tema do preconceito religioso também estava presente, especialmente no núcleo da irmã Angélica ? interpretada por Elisabeth Savalla ? um freira que desperta para o amor e vive uma paixão proibida por um jovem da cidade. O prefeito Aquino, interpretado pelo ator Ênio Santos ? era um solteirão. Perfil que, para um líder político, incomoda muita gente ainda hoje; imagine, então, nos anos 60, 70...

Hoje, mais de trinta décadas depois da exibição na novela, a cidade que inspirou a fictícia Albuquerque de Estúpido Cupido saiu na frente, surpreendeu a todos e presenteou o Brasil com o primeiro prefeito assumidamente gay do país: Edgar de Souza, de 34 anos. Eleito com uma folga de dez mil votos nas eleições de outubro do ano passado. Assim como o líder político de Estúpido Cupido, o atual prefeito de Lins também gera muita polêmica. O da novela era solteirão; o da vida real tem um relacionamento homoafetivo há nove anos com o empresário Alex Trindade. Juntos criam dois filhos adotivos de 1 e 3 anos de idade. Tolerante Cupido já é uma emocionante novela da vida real.

Por ironia, o protagonista Edgar foi eleito numa cidade que hoje tem 170 igrejas evangélicas e é uma das bases eleitorais do pastor deputado Marco Feliciano, que ainda preside, apesar de todos os protestos, a Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara Federal. Como se comportará a Justiça ao julgar a autoria das agressões homofóbicas e religiosas que Edgar sofreu durante a campanha eleitoral? Cenas para os próximos episódios de Tolerante Cupido, um possível remake pós-moderno da nostálgica Estúpido Cúpido, a última novela em preto em branco da Rede Globo. Apenas o último capítulo da trama foi gravado em cores, para surpresa de todo elenco. Quem sabe a eleição de Edgar de Souza, que também foi uma grande surpresa, seja o marco do fim de uma era de escuridão para os gays na política brasileira e, quem sabe, anuncie dias mais coloridos para a tolerância em todo o Brasil.

O autor, Lucius de Mello, é escritor, jornalista e pesquisador do LEER ? Laboratório de Estudos sobre Etnicidade, Racismo e Discriminação e do ARQSHOAH- Arquivo Virtual do Holocausto e Antissemetismo ? Universidade de São Paulo